sábado, 17 de maio de 2014

Paulo Colina: pequenas considerações descompromissadas sobre este negro poeta-ensaísta instigante

Paulo Colina: pequenas considerações descompromissadas sobre este negro poeta-ensaísta instigante
Ricardo Riso
“Se a Literatura não tem cor, por onde andam as negras e os negros escritores nas literaturas brasileira e africanas de língua portuguesa?” Este será o tema para minha participação em uma mesa de escritores durante o Griots 2014, na UFRN. Elaborando o material para essa ocasião, releio o prefácio de Paulo Colina (1950-1999) para “O Negro Escrito – apontamentos sobre a presença do negro na literatura brasileira”, organizado por Oswaldo de Camargo. Paulo Colina é um nome incontornável da literatura negro-brasileira por esgarçar as experiências estético-formais, investir com ousadia na linguagem sem deixar de evidenciar a marca de um sujeito lírico/narrador negro. Sua transnegressão (citando Ronald Augusto a partir de feliz expressão poética de Arnaldo Xavier) prima muitas vezes pela concisão, fugindo do excesso contemplando o sublime poético pelo apreço à síntese, talvez originária do seu gosto pelo tanka, estilo poético japonês. Como exemplo “Primeira regra de vôo”:

Quando sonhamos
                com o horizonte
a precisão é fundamental. (COLINA, 1984, p. 33)

Para além da produção poética e ficcional, Colina organizou “Axé – antologia contemporânea de poesia negra brasileira”, pela Global Editora em 1982, reunindo alguns dos principais agentes da geração literária negra surgida ao final dos anos 1970. Procurando evidenciar a expressividade nacional da nova poesia negro-brasileira, a publicação agrupa poetas negrxs “fora do grande eixo São Paulo-Rio (como poderão constatar aqui) escritores negros espalhados e ilhados de vários estados deste continente que chamamos Brasil” (COLINA, 1982, p. 8-9). Importante mencionar a relação dos literatxs com o movimento negro rearticulando-se naquele período de abrandamento da ditadura, o que serviu como forma de iniciar esse intercâmbio e propiciar ações coletivas e de alcance nacional (fato destacado por Miriam Alves, Éle Semog e tantos outros), eliminando o isolamento característico de negrxs escritores do passado. E “Axé” acabou sendo eleita a melhor publicação de poesia do ano, prêmio oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte – APCA.
Colina também foi um dos fundadores do Quilombhoje, coletivo responsável pela série “Cadernos Negros”. Com Oswaldo de Camargo e Abelardo Rodrigues, formou o que ficou conhecido como “Triunvirato” após a saída do coletivo Quilombhoje por não concordarem com os rumos deste, e lançaram o manifesto “O escritor negro no Brasil, quem é ele?”. Negro ensaísta dos necessários, seguem duas amostras do seu comprometimento literário e identitário. A primeira, o prefácio de Paulo Colina para “O Negro Escrito – apontamentos sobre a presença do negro na literatura brasileira”:

“Entendo que a função do escritor é dar testemunho fiel de seu tempo, ser o observador ativo de sua sociedade; é colocar-se, enquanto ser humano (homem/mulher), em confronto com o mundo. Seu instrumento, não menos que a arte.
Por experiência, sei que toda vez que o “negro escrito” aparece em um debate, uma conferência, uma palestra, surgem, de pronto, as perguntas de rotina: “Mas por que literatura negra? Existe? A literatura tem cor?” E sou obrigado a retroceder às análises que tenho feito desde que me confronto com o mundo. Para chegar à conclusão de que à sociedade pátria interessa o “negro mudo”.
Tudo uma questão de voz. Quer ver, leitor? Quando se questiona a existência de uma literatura negra ou afro-brasileira – quero dizer, o “negro escrito”, o escritor negro se expressando perante e enquanto mundo –, existe aí uma tentativa de negação. Negação dos valores que o negro despe em seu que-fazer literário. Bom adiantar não ser tema fundamental ao negro a defesa da ecologia, nem a bolsa de valores ou o privê da moda. Frisar que a sociedade brasileira se diz democraticamente racial. Essa grife. Que não resiste à nudez.”

A segunda encontra-se em “Reflexões pela noite viva”, comunicação apresentada no 40º congresso anual da SBPC, em 1988:

“A literatura é universal, sim. Mas para nós tem cor. Negra. Não no sentido que Gilberto Freyre quis dar a ela em seu prefácio a “Poemas Negros”, de Jorge de Lima; tampouco no sentido contemplatório, na terceira pessoa do singular, como nos entrega Raul Bopp. Quando cantamos “eu”, este “eu” é coletivo. Seguramente, literatura para nós tem cor. E quando a chamamos de negra, mais que uma definição, é uma arma de ponta com a qual combatemos todas as armadilhas que procuram nos caçar o Ser, no sentido lato que este verbo exige, e que no último censo, realizado em 1980, provou que não é conjugado nesta terra de acordo; que democracia racial aqui é falácia, apenas. E, pela poesia, recuperamos nossas verdades, nossas raízes. Quer falando de amor, quer questionando o racismo, fazendo a reversão de valores ou revisando nossa história (e/ou). Recuperando nossa identidade, sempre. (grifos nossos).


A palavra apunhalada de Paulo Colina destaca a necessária autodenominação para essa vertente literária, rasurando o cânone, negando aqueles que foram eleitos como representantes de uma literatura negra brasileira, demonstrando a hipocrisia das nossas relações e a urgência de romper o véu branco que impede a realização e a afirmação da pluralidade racial brasileira. Literatura negro-brasileira necessária para despertar de consciências, para denunciar o racismo sistêmico que estamos submetidos; literatura negro-brasileira para mostrar que algo vai mal, muito mal entre nós, e que isso passa pelas ininterruptas tentativas de branqueamento deste país.