domingo, 30 de junho de 2013

Vera Duarte – O arquipélago da paixão (A Nação)


Vera Duarte – O arquipélago da paixão
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 163, p. 11, 14/10/2010.

O segundo livro de poesia da escritora Vera Duarte, "O Arquipélago da Paixão" (Mindelo: Artletra, 2001), apresenta em suas epígrafes o constante diálogo entre os poetas de gerações posteriores com as tendências temáticas de seus predecessores. Vera Duarte presta tributo aos escritores que sedimentaram o corpo poético cabo-verdiano, parafraseando os temas que os caracterizaram.

Vera Duarte é poeta, romancista, ensaísta e juíza, para além de vários cargos em prol dos direitos da mulher. Nascida na cidade de Mindelo, ilha de São Vicente, formou-se em Direito na Universidade Clássica de Lisboa, em Portugal.

Como em seu 1º livro de poesia, "Amanhã amadrugada", este "O Arquipélago da Paixão" também divide-se em quatro cadernos. As homenagens não se restringem aos compatriotas, mas estendem-se a angolanos como Mario de Andrade e Luandino Vieira, entre outros.

Em "Os meninos", dedicado a Jorge Barbosa, o uso do pasargadismo como evasão denuncia a condição miserável em que se encontram "os meninos da pobreza, do abandono e do desespero. De ranho no nariz, pés descalços e calções rotos eles passeiam seus corpos esqueléticos". Como alento à triste situação os meninos "sonharão com terras distantes, glórias inexistentes e banquetes fabulosos até que o romper do sol e a fome crónica os arranque do sossego cúmplice dos botes para mais um dia de desesperanças”. E assim como o poeta claridoso, oferecer o gesto solidário: "Queria então estar ao lado deles e sem qualquer palavra, passar-lhes a Estrela da Manhã".

Na reflexão seguinte, Duarte homenageia outro claridoso, Baltasar Lopes (Osvaldo Alcântara). Em "A viagem", a imagem de Pasárgada é motivada pela pobreza do arquipélago: "No seu cotidiano de miséria, dormindo no chão húmido de terra batida, coberto de serapilheira e comendo os restos repartidos, (...)/ Aguarda contudo com ânsia o dia da partida./ A viagem. O vapor./ Sabe que um dia, escondido em um navio cargueiro, ele irá demandar novos horizontes, zarpará à procura da terra prometida./ Então sim ele poderá decifrar a angústia que lhe encolhe a alma quando o seu corpo celebra a ânsia da partida."

Já Mário Fonseca recebe um longo poema dedicado à liberdade, às conquistas de todos os povos e às mulheres. Em "Ortodoxias em desagregação", o eu lírico agradece a premonição do poeta, sua certeza na Utopia, sua defesa da justiça, sua exaltação nas vitórias diversas em todas as partes e em todas as épocas: "O fascínio vem-me de longe / de tudo o que foi esperança / desde o início dos tempos".

Ao poeta Oswaldo Osório o eu lírico reflete e denuncia a dor sofrida pela mulher, da estreita relação entre amor e morte. Divaga: "confusa me pergunto se o amor rima com escravidão, submissão, humilhação", e comenta o destino cruel: “converter-se de humano a farrapo/ no destino caótico de vidas/ que a vida nada reservou".

Em "A outra", dedicado à Dina Salústio, há o conflito existencial de uma mulher que se rebela contra as normas sociais em convívio inquietante com a mulher que aceita a submissão, além de questionar uma "civilização incoerente": "Quem é essa outra mulher que me habita e abusivamente ocupou quase todos os espaços? (...)/ Quem é essa mulher que me oferece as bem-aventuranças e me cega para os precipícios?/ Madalena a mulher espreita e tenta. Ela quer e sabe./ Mas há uma inquietação também por um destino feminino sem subversões, feito de silêncio e de renúncias, que garantem Maria, virgem mãe./ Quantas vezes me quedarei perplexa e angustiada perante as encruzilhadas desta civilização incoerente?".


Apreendemos o amor incondicional de Vera Duarte a Cabo Verde em “O Arquipélago da Paixão”, e, principalmente, à literatura das ilhas por meio das epígrafes dedicadas aos poetas, ora do passado claridoso, ora aos seus pares contemporâneos. Assim, percorremos o percurso de afirmação da literatura cabo-verdiana no decorrer do século XX, suas inquietações, conflitos e mudanças temáticas. É a poesia agindo com olhar crítico para um jovem país em construção.

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