quinta-feira, 18 de abril de 2013

Lívia Natália - Água Negra (resenha)


Lívia Natália - Água Negra

Ricardo Riso

Desde o final dos anos 1970 que a literatura negro-brasileira vem galgando o seu espaço e cobrando a sua inserção na literatura brasileira, que sempre legou a essa vertente literária o silêncio do ostracismo. Porém, escritoras e escritores dessa época seguiram a raiz quilombola da força negra, motivados pelas vozes de libertação dos países africanos de língua portuguesa, pelas reivindicações do movimento black nos EUA e pelas manifestações contra o apartheid na África do Sul, uniram-se e, em meio as rearticulações do movimento negro dentro do abrandamento da ditadura, lançaram “Cadernos Negros” em 1978. A partir daí, fortaleceram-se em grupos como o Quilombhoje (São Paulo, 1980) e o Negrícia – poesia e arte de crioulo (Rio de Janeiro, 1984-1992). Contudo, apesar dessa nova movimentação no meio literário brasileiro eles permaneceram marginalizados pelo mercado editorial.

Entretanto, a literatura negro-brasileira segue uma crescente linha ininterrupta, incomoda e exige a sua presença nos cadernos literários, nos programas de Letras das universidades e nas livrarias e editoras. “Cadernos Negros” completou 35 anos, vários autores possuem diversos títulos publicados, novos nomes surgem com vigor e uma rede negra segue traficando os seus agentes no boca a boca, em blogs e em redes sociais. Ou seja, a literatura negro-brasileira evidencia a necessidade de escurecer a literatura brasileira e a sua tão divulgada universalidade. Logo, contrária a essa universalidade redutora que me escoro no filósofo sul-africano Mogobe Ramose:

Considerando que “universal” pode ser lido como uma composição do latim unius (um) e versus (alternativa de...), fica claro que o universal, como um e o mesmo, contradiz a ideia de contraste ou alternativa inerente à palavra versus. A contradição ressalta o um, para a exclusão total do outro lado. Este parece ser o sentido dominante do universal, mesmo em nosso tempo. Mas, a contradição é repulsiva para a lógica. Uma das maneiras de resolver essa contradição é introduzir o conceito de pluriversalidade (RAMOSE, 2011, p. 10).

 

Dentro do processo de alargamento exigido para a concretização da pluriversalidade, destaca-se a literatura produzida por mulheres negras combatendo as esferas do poder falocrático[2]. Contra rasuras, estereótipos de sexualidade e animalização, Miriam Alves afirma que:

tendo em vista o aviltamento do qual foi vítima esse corpo negro que passou pela coisificação, mutilação, primeiro pela da escravização, e depois seguido da automutilação, para aproximá-lo da estética branca alienígena à sua feição natural. Antes de tudo, é um corpo vitimado que necessita de se desvencilhar das marcas de sexualização, racialização e punição nele inscritas para redefini-lo numa ação de afirmação e autoafirmação de identidade (ALVES, 2010, p. 71).

 

Contra as Bertolezas literárias, as escritoras marcam presença como sujeito discursivo que desestabiliza tanto o racismo quanto o sexismo, expõem o ponto de vista de vozes silenciadas por séculos de exclusão e reivindicam a sua inclusão na literatura brasileira. Sendo assim, hoje pode-se dizer que a produção de autoria feminina negra é o que há de mais instigante na literatura negro-brasileira com excelentes representantes que fazem do texto literário a arena para romper com os anos de opressão. As obras de Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Lia Vieira, Miriam Alves, entre muitas outras jovens escritoras estão aí para provar a qualidade dessa escrita.

Nessa expectativa e ampliando a literatura negro-brasileira de autoria feminina, a renovação e a continuidade do seu fortalecimento e amadurecimento encontra no livro de estreia da baiana Lívia Natália, “Água Negra” uma expressão pungente de que a poesia ainda surpreende. E muito. Essa jovem escritora é Doutora em Estudos Literários pela UFBA onde atua como professora de Teoria da Literatura. A publicação de “Água Negra” tem sua origem na premiação do Projeto Arte e Cultura do Banco Capital, edição 2011. O livro é composto por 29 poemas distribuídos em três cadernos.

A leitura do livro demonstra que Lívia Natália é uma poetisa de múltiplos recursos, que domina como poucos a palavra poética, revela cuidado e respeito pela palavra depurada, “como uma ostra:/ tecendo a pérola” (p. 19), poesia que “dentro desta água doce cabe a violência das torrentes” (p. 29) de tão imprevisíveis que são as imagens criadas em seus versos. Assim inicia “Rastro”: “Somos todos feitos da poeira de estrelas./ Elas apenas tangenciam nossos sonhos/ inscrevendo-os na pele do infinito.// (...) Há, na trama retecida da minha alma,/ um ressoar silente como o das estrelas,/ a que chamo angústia,/ apesar da poeira luminosa e viva/ que trago debaixo dos pés” (p. 13). A poesia é feita das menores observações, dos gestos e objetos insignificantes, da poeira à inacessibilidade das estrelas a força da palavra poética ilimitada como os sonhos, como o infinito. A imaginação desmesurada em função de uma estética vigorosa para desestruturar os sentidos. Da angústia do “útero de poeta” fecunda essa arte inquietante de Lívia Natália.

Poesia que navega por água turva, os versos de Lívia Natália no melhor estilo simbolista formam um “périplo de rotas insondáveis” (p. 49), de uma escrita que percorre e dignifica o ser mulher, aguerrida e desafiadora perante a ordem falocrática da sociedade. Por isso, metaforiza a morte da cigarra com a força, sempre urgente, que acompanha a mulher: “dentro dela vive uma ferida sem remédio,/ ela abriga no seu ventre/ um corte nascido de dentro,/ que dilacera entranhas.// No seu ventre moram medos insondáveis./ E um corte que sangra alto.// Toda cigarra,/ como eu,/ morre gritando!” (p. 59).

Desse âmago feminino que dilacera as entranhas evoca uma postura de enfrentamento, pois “As senhas do meu corpo/ Falo nenhum devassa” (p. 57) traduz uma ressignificação ético-estética de um novo sujeito feminino, autônomo no seu discurso e obriga a revisão do posicionamento estratificado da hierarquia social que subjuga a mulher, sendo que dentro do gênero a negra ainda é mais inferiorizada. Ainda que tenha uma poesia de vísceras, Lívia Natália explora os sentidos polissêmicos, reconfigura sentidos, alegoriza os ciclos femininos, esse “líquido grosso” que “das paredes duras vaza um mais escuro que,/ imagino, seja a água mordendo as estruturas.// A água é assim:/ atiçada do céu,/ infinita no mar,/ nômade no chão pedregoso,/ presa no fundo de um poço imenso:/ A água devora tudo/ com seus dentes intangíveis” (p. 39).

Com isso, são metaforizados os ritos, os votos em uma poesia-corpo que também é das delicadezas como a de Paula Tavares, um caso paradigmático da literatura angolana, uma voz provocadora de novas semânticas para a poesia de Angola. Lívia e Paula transformam o fazer literário em arma, são vozes dissonantes combatendo as certezas masculinas e o seu furor sexual oco e opaco. Assim diz o sujeito lírico de Paula Tavares em “A curva do rio”:

Desce a curva do meu corpo, amado/ com o sabor da curva de outros rios/ conta as veias e deixas as mãos pousarem/ como asas/ como vento/ sobre o sopro cansado/ sobre o seio desperto// Parte a canoa e rasga a rede/ tens sede de outros rios/ olhos de peixes que não conheço/ e dedos que sentem em mim a pele arrepiada/ d’outro tempo// Sou a esperança cansada da vida/ que bebes devagar/ no corpo que era meu/ e já perdeste/ andas em círculos de fogo/ à volta do meu cercado/ Não entres, por favor não entres/ sem os óleos puros do começo/ e as laranjas” (TAVARES, 2004, p. 60).

 

Enquanto sujeito lírico de Lívia Natália revela o desencanto de “Perdida”:

Não há,/ na tua boca,/ dente são que me morda/ ou me devore...// Há apenas teu silêncio/ de vento mastigando as correntezas,/ de céu tenso sem o excesso de nuvens brancas.// Há desejo nesta língua de sonho/ que meu corpo devora sôfrego?// Se há natureza/ - na ordem harmônica do mundo -/ o tempo da espera e do silêncio,/ haverá tempo, ainda/ para que matures os dentes/ para o verde deste teu afeto?// Eis a maldição de toda mulher:/ viver, num só teu verão,/ ou teu inverno/ a urgência de todas as primaveras. (p. 51)

 

Para além da incapacidade masculina fechada em seu mundo de poder opressivo, a poesia de Lívia Natália apresenta outros diálogos com o heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos na epígrafe e na contestação social do poema “Da hora do cansaço” e a sua proximidade com o “Poema em Linha Reta” daquele, assim como a reconfiguração simbolista do mito grego de Ícaro em “Lágrima de Ícaro”. Porém, identifico como uma marca de enorme relevância na poética aqui exposta é a exploração sensível da religiosidade de matriz africana, deslocando seus signos, experimentando outras sensações em “Asé”:

O sangue, ejé que corre caudaloso,/ lava o mundo e alimenta/ o ventre poderoso de meus Orixás./ A cada um deles dou de comer/ um grânulo vivo do que sou/ com uma fé escura.// (...) Minha fé é negra,/ e minha alma enegrece a terra/ no ilá/ que de minha boca escapa.// Sou uma árvore negra de raiz nodosa./ Sou um rio de profundidade limosa e calma./ Sou a seta e seu alcance antes do grito./ E mais o fogo, o sal das águas, a tempestade/ e o ferro das armas.// E ainda luto em horas de sol obtuso/ nas encruzilhadas (p. 33).

 

É essa sintaxe inovadora transversalizando a alvura da literatura brasileira, é a diversidade poética ressemantizando e propondo o esgarçamento do cânone, este na encruzilhada tendo escancarada a percepção de sua fragilidade. Em ruidosas ruínas a sua indiferença fere e sangra. Delicada e visceral, a poesia de Lívia Natália é transnegressora, navega destemida por uma diversidade de águas, sendo sempre negra, reconfigurando margens, desbravando a multiplicação dos sentidos, provocando os redutores/detratores da literatura negro-brasileira ao mostrar o apurado conteúdo estético ainda assim engajado, preocupado com o social, atento à discriminação, mas, sobretudo, feminina e a serviço das possibilidades ilimitadas que o fazer poético pode oferecer. A poesia de Lívia Natália é um rio que deságua num mar sem fim, como o poema que encerra “Água Negra”, o orikai “Oriki para Osun”: “O rio se cala,/ mas há quem não saiba/ que ele é fundo” (p. 73).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALVES, Miriam. A literatura negra feminina no Brasil – pensando a existência. Revista da ABPN. V.1, n. 3 – Nov 2010 – fev. 2011. p. 181-189.

AUGUSTO, Ronald. Transnegressão. In: PEREIRA, Edmilson de Almeida (Org.). Um tigre na floresta de signos – estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010. pp. 425-437

RAMOSE, Mogobe B. Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana. Revista Ensaios Filosóficos. Volume IV, outubro/2011.

TAVARES, Ana Paula. Poesia. Biblioteca da Literatura Angolana. Luanda: Edições Maianga, 2004.



[2] Ver ALVES, Miriam. A literatura negra feminina no Brasil – pensando a existência. Revista da ABPN. V.1, n. 3 – Nov 2010 – fev. 2011. p. 181-189

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