domingo, 26 de fevereiro de 2012

“Histórias cruzadas" e a nossa história


“Histórias cruzadas" e a nossa história
Ricardo Riso

“Histórias Cruzadas” (The Help, dir. Tate Taylor) tem a ótima e marcante interpretação de Viola Davis, a babá, mulher negra que dedica a vida para cuidar dos filhos dos patrões brancos do Mississipi, cidade sulista e de racismo extremo dos EUA, durante o início dos anos 1960. O corte temporal coincide com as lutas dos movimentos em prol dos direitos civis para os negros, inclusive retratada na película a famosa marcha liderada por Martin Luther King a Washington.

Entretanto, apesar da história ser ambientada no sul racista norte-americano, durante a projeção várias vezes fiquei pensando nas relações étnico-raciais brasileiras. A primeira fala de Aibileen Clark (Viola Davis) apresenta a genealogia das mulheres de sua família. A narradora babá, sua mãe também babá e sua avó, escrava-babá. Isso demonstra a condição estática da mulher negra em uma sociedade marcada por uma ideologia racista, o que remete à situação das mulheres negras na diáspora.

A ideia central do filme se dá com o desejo de uma jovem jornalista, branca, em reunir depoimento dessa babá negra a respeito do seu cotidiano, já que as opiniões de sua categoria profissional jamais foram ouvidas. Inevitável o receio da babá, visto que jamais teve oportunidade de falar abertamente com uma pessoa branca, ainda mais expor a sua vivência. Até que decidem reunir várias babás para que cada uma escreva as suas próprias memórias. A partir daí, babás autoras retratam as diferentes facetas do cotidiano excludente imposto pelo racismo descarado da sociedade branca do sul dos Estados Unidos.

É interessante notar como o conceito de “escrevivência”, desenvolvido por Conceição Evaristo, enquadra-se na literatura produzida por mulheres negras na diáspora e na constituição do empoderamento do ser feminino negro. Com o ato da escrita, logo vem o desejo de narrar as experiências dessas mulheres, ocultas e invisibilizadas pela sociedade. A voz solitária de cada autora transfigura-se como porta-voz de todo um coletivo de mulheres negras, as “Vozes-Mulheres” do poema de Conceição Evaristo, as quais se identificam com os fatos relatados, seus anseios, dúvidas, alegrias e decepções, e a oportunidade de vir à tona os preconceitos de diversas ordens, dentre tantos, os de gênero e os de relacionamento com as mulheres brancas.

Para além do ato da escrita, na película determinadas passagens do cotidiano assumidamente racista daquela época lembram bastante a condição excludente e submissa das empregadas negras brasileiras, também babás dos filhos das mulheres brancas desde o período da escravidão. Assim sendo, trago para recordação apenas duas cenas de “Histórias Cruzadas”:

1. Quando uma babá cria coragem para pedir dinheiro aos patrões para que seu filho possa ingressar na faculdade e se depara com a indiferença do marido, que logo se levanta e parte para o trabalho ignorando completamente o que a babá falou, e o olhar de pouco caso, desprezo mesmo, da patroa que escora sua resposta na importância do trabalho e na hipocrisia da fé – afinal, Deus ajuda quem trabalha – não lembra a insensibilidade dos nossos patrões com suas empregadas? Quem não conhece alguém da família ou uma mulher negra que não tenha passado por situação semelhante?

2. O banheiro externo exclusivo para as babás e a proibição de usar o banheiro da casa, acompanhado dos devidos comentários das patroas brancas cheias de asco ao mencionarem a absurda possibilidade de partilhar o vaso sanitário com uma negra, suja por natureza e espírito. O que são os nossos banheirinhos de empregadas? Aqui se recomenda o não uso do banheiro dos patrões.

São casos assim mais as demissões por motivos banais, a babá que vira a mãe negra da criança branca, as raríssimas opções no mercado de trabalho, os deprimentes almoços beneficentes para ajudar os necessitados negros, que remetem à realidade brasileira, ao nosso cotidiano conturbado das relações raciais. Por essas lembranças, pelos olhos secos, tal como no poema do angolano Agostinho Neto, da personagem de Viola Davis que traduzem os sentimentos das mulheres negras diante dos absurdos impedimentos e injustiças de um poder marcado pelo racismo, olhos secos que demonstram uma história “que só os NEGROS/ Sabem contar/... Que poucos podem/ Entender”, como no poema “Ponto Histórico” de Éle Semog, por mencionar indiretamente as nossas vivências que “Histórias Cruzadas” merece ser visto, para além do ótimo elenco feminino, com destaque especial para Viola Davis.

PS: Em um dado momento, aparece no jornal da televisão Malcom X discursando a respeito dos negros unirem-se para boicotar os produtos da Capitol. Lembro que os negros do sul dos EUA ficaram mais de um ano sem utilizar os ônibus locais após a prisão de Rosa Parks, a mulher que se recusou a ceder o lugar para um branco. Portanto, o boicote deve ser usado por nós, pois boicotar o consumo ou qualquer produto, ou pessoa, que remeta a práticas racistas é a única lógica que o mercado/pensamento hegemônico branco e racista entenderá e a partir daí escutará as nossas reivindicações. Quando atingiremos essa maturidade e organizaremos essas ações?

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