terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Alex Dau – Reclusos do Tempo (nova literatura de Moçambique)

Alex Dau – Reclusos do Tempo
Por Ricardo Riso

A literatura moçambicana inicia o século XXI sob o signo da desconfiança, sofrendo acusações de sua morte por parte de uma nova geração de escritores que reivindica visibilidade para seus textos e oportunidades de publicação. Configura-se, então, um conflito de gerações, principalmente com os partícipes da revista Charrua e com a histórica AEMO – Associação dos Escritores Moçambicanos, esta acusada de favorecer os escritores oriundos daquela revista.

Uma breve consideração para situar o contexto histórico dos anos 1980, época de criação tanto da AEMO (aglutinando os nomes literários que contribuíram no processo de independência do país, em 1982, e seguindo os passos da coleção Autores Moçambicanos, do Instituto Nacional do Livro e do Disco/INLD, lança diversos nomes históricos que não tiveram suas obras publicadas durante o colonialismo) quanto o da revista Charrua (criada em 1984). Os escritores de Charrua promoviam uma literatura com viés telúrico, existencialista e onírica, alargando o verbo poético enrijecido pela Poesia de Combate. Para Carmen Lucia Tindó Secco, “os poetas de Charrua que de novo facultasse o direito aos sonhos, compreendidos estes como estratégias de resistência cultural, como elementos propulsores da imaginação criadora e dos desejos reprimidos” (SECCO, 2006, p. 236).

Charrua, já em um novo momento e por uma nova geração, aponta para o ato de revolver a terra, de fertilizá-la, atitude que será posta em prática e transferida para a poesia de escritores como Eduardo White e Armando Artur que, segundo a Profª Rita Chaves:

beneficiando-se também das vantagens de estar situado na capital do país, o grupo de Charrua alcança grande projeção e consegue, de fato, alterar alguns dos elementos que estavam na base do projeto literário de Moçambique. Serenados de certa maneira os ventos animados pela conquista da independência, consolidada a convicção de que um novo tempo estava aberto, preparava-se a cena para novas exigências também no plano da criação literária. (...) A reinvidação altera seu foco, deslocando sua ênfase para a construção de um projeto estético voltado para a recriação da dimensão lírica, assentada na valorização da subjetividade.” (CHAVES, 2005, p. 167)

Depreendemos que ao remexer nas propostas formais, estéticas e temáticas da poesia moçambicana durante a década de 1980, essa geração mostra o caráter revolucionário, para usar um termo da época, em prol de uma poesia pluralista e universalizante. Retomando a discussão para os dias atuais, o Prof. Dr. Francisco Noa ao refletir sobre a polêmica da suposta morte da literatura moçambicana aponta alguns pontos relevantes que ajudam a compreender as dificuldades por que passa “a geração dos condenados a não publicar”: escassos recursos financeiros das editoras e o receio em investir em novos nomes; ausência de uma política de incentivo à leitura no país; a desatenção da Educação que não estimula o hábito da leitura, principalmente àqueles que estão no Ensino Básico; e a perda de valores da sociedade, cada vez mais materialista, reduzindo a aura do escritor, da literatura e da arte em geral (NOA, 2008, p. 132).

Por outro lado, o Prof. Lourenço Joaquim da Costa Rosário apresenta uma visão otimista do atual momento da literatura de seu país, pois, de acordo com os concursos literários que organiza, percebe que “a quantidade de originais não para de aumentar. Portanto, a produção de textos está muito bem e recomenda-se” (ROSÁRIO, 2010, p. 135-136¬). Ou seja, a nova geração segue cumprindo o seu papel, de dar continuidade e valor à história literária de Moçambique apesar das barreiras impostas pela pós-modernidade. A respeito disso, Francisco Noa ressalta que:

Enquanto verdadeira consciência das nações, a literatura tem sido a grande utopia de si própria e do porvir das sociedades. Nenhum intelectual, nenhum escritor, particularmente em África, se pode assumir como tal enquanto não for um produtor de ideias e de valores. Ser escritor em países como os nossos significa, hoje mais do que nunca, uma imensa responsabilidade estética, ética, intelectual e social (NOA, 2008, p. 132).

Apreendemos que o Prof. Noa exige uma postura participativa do escritor moçambicano enquanto intelectual atuante na sociedade, sendo um cidadão que incomoda a ordem estabelecida, o que nos leva a recordar Jean-Paul Sartre quando afirma que “o intelectual é alguém que se mete no que não é da sua conta” (SARTRE, 1964, p. 14). Assim sendo, a partir do momento que uma nova geração de escritores grita por seu espaço, essa geração age, por meio da literatura, como intelectuais ativos que deseja expor suas ideias, angústias e anseios para a sociedade. Como é reduzida a disseminação da leitura em Moçambique, os escritores acabam atuando à margem da sociedade, tornando-se exilados em seu próprio país. Condição esta estimulada pelo próprio poder público com suas ineficazes políticas. Para Edward Said, esse exílio torna-se a condição do intelectual, aquilo que lhe é imposto passa a ser algo que valorizará as suas observações, o seu olhar perante o meio em que vive, ou seja, “é o desassossego, o movimento, a condição de estar sempre irrequieto e causar inquietação nos outros” (SAID, 2005, p. 60), por que se afastando “das autoridades centralizadoras em direção às margens, onde se podem ver coisas que normalmente estão perdidas em mentes que nunca viajaram para além do convencional e do confortável” (SAID, 2005, p. 70).

Apesar das críticas que a AEMO sofre, novíssimos nomes são lançados por sua editora, tais como os bons poetas Andes Chivangue e Sangari Okapi. Na prosa, podemos destacar “Reclusos do Tempo”, a estreia em livros de Alex Dau, pseudônimo de Paulo Alexandre Dauto da Conceição, natural de Quelimane-Zambézia, nascido a 23 de Maio de 1972. Frequentou o curso de Literatura portuguesa ministrado pela Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane em parceria com a Embaixada de Portugal em Moçambique, mais tarde também cursou literatura Africana promovida também pela Universidade Eduardo Mondlane. Foi funcionário da Televisão de Moçambique onde para além de outras atividades exerceu a função de realizador tendo dirigido o programa literário “Leituras” apresentado e editado por Nelson Saúte. Têm obras em prosa e poesia publicados em diversas revistas e semanários de Moçambique e Brasil.

“Reclusos do Tempo” foi lançado em 2009 pela Associação dos Escritores Moçambicanos e reúne doze pequenos contos e um glossário. As narrativas de Dau navegam entre os ambientes urbano e rural, trágicas em sua maioria, envoltas em personagens marginais, feitiços e espíritos irritados com o descumprimento das oferendas por parte dos homens, assim como as sombras da triste guerra civil que arrasou o país por anos. Para além de problemas típicos do cotidiano urbano contemporâneo, como a doença SIDA/AIDS e o infortúnio de um jovem que, após o exame, descobre não ter contraído a doença, contudo, morre atropelado por um carro quando se encaminhava para avisar à namorada em “Os imortais da minha terra”. Nesse conto, ainda destaca-se a dificuldade de tratar essa moléstia pelo interior do país, pois nesses lugares as pessoas “não querem saber de usar preservativo. Eles não acreditam nessa doença, admitem sim que, depois de um tratamento tradicional, ficam imunes a qualquer doença de transmissão sexual” (DAU, 2009, p.46).

Há uma atmosfera de intensa tensão nos espaços urbanos narrados nos contos de Dau. Sem melhores esclarecimentos psicológicos, seus personagens agem, muitas vezes, pelo impulso, ora pelo desejo incontrolável de satisfazer-se sexualmente com uma prostituta, “Estaria eu enfeitiçado por aquela ‘striper’, de tal maneira, que nem sequer era capaz de abandonar aquele local e voltar para os braços da minha esposa?” (DAU, 2009, p. 9), ora na desmedida vontade de possuir uma prostituta, porém mulher branca, “A destemida mulher acorda-lhe um sonho que era quase irrealizável: possui um ‘white-girl’. (...) Acalma-se quando revê a foto da loira, que foi sua amante, nos escassos minutos, que os cinquenta euros proporcionaram” (DAU, 2009, p. 14-15).

Como também no sonho de consumo desenfreado impulsionado por uma sociedade cada vez mais capitalista e egoísta, o que conduz a vida ao desengano, ao banditismo com o intuito de manter um patamar social elevado e apresentado em “Silêncio Baleado”. O infortúnio demonstra-se no texto, pois o seu protagonista é um ladrão, contudo, ao deixar a casa de sua menina, depara-se com uma batida policial. O desespero apodera-se e resolve fugir. “Só podia ser azar – repensou, depois de se lembrar que homenageara os espíritos dos seus defuntos. Será que esquecera de invocar algum ente querido?” (DAU, 2009, p. 42). A perseguição o leva a invadir a casa de sua amada, tornando-a refém. O final se dá com a morte do ladrão e a menina e família salvas.

Ou ainda por antigas desavenças terminadas em mortes e a justiça feita pelas próprias mãos:

Já possuído pelos nervos, Nhassengo avançou firme, como um soldado fiel à pátria, e segurou seu inimigo. (...) Sua vítima ofegava calado (...) Um tiro fez-se ouvir (...) O corpo de Nhassengo tombou.
Todas as testemunhas, numa comunhão de vingança e coabitando um silêncio pagão, marcharam decididas pelo chão ensanguentado. Macamito não teve tempo de raciocinar a fuga, quando cento e cinquenta dedos lhe apertaram a garganta. Sentiu o hálito da morte por perto, e lembrou-se de todas as vítimas que fizera. Antes de se arrepender, deu o seu último suspiro. (DAU, 2009, p. 11-12).

As marcas da guerra são expostas de forma irônica no pequeno conto “Contro-ataque”, ao narrar a luta de uma pessoa que é acordada por um inimigo, um mosquito, motivo para o narrador utilizar todo o conhecido vocabulário militar: “O corpo aniquilado ficou derrubado no chão. (...) Ainda patrulhei uns dez minutos, para averiguar se não haveria mais nenhum intruso no meu território.” (DAU, 2009, p.16-17). Entretanto, ao final, deixa-se o registro de uma vida desgarrada: “Tomei uma decisão, que faria questão de cumprir: da próxima que arranjasse uns cobres, iria comprar uma rede mosquiteira, em vez de os investir numas médias de cerveja” (DAU, 2009, p. 17).

A crueldade das circunstâncias históricas que descartam aqueles que lutaram por um país independente ganha contornos imprevisíveis, às vezes hilários, no conto “Comandante Wambara”. Seu protagonista é destituído de suas atividades com a chegada da paz, “Capitão, estando o país em paz e seguindo as cláusulas do Acordo de Paz, não precisa de líderes guerreiros, por isso o senhor será desmobilizado” (DAU, 2009, p.49). Wambara perde a cabeça, agride seu superior, é preso e acaba louco quando sai da prisão. A partir daí, começa a comandar “enfurecidos soldados invisíveis” e passa a recrutar “vagabundos que habitavam a cidade”. Como era um exímio estrategista militar, seu exército passa a atuar como uma milícia, defendendo os cidadãos de marginais, mas cobrando uma taxa por isso. Ao final do conto, uma autêntica guerra é travada entre as forças nacionais e o exército de Wambara, que exige para ele e seus homens como acordo “a (re)integração no exército regular, com todas as regalias inerentes à sua patente” (DAU, 2009, p. 54). No que foi prontamente atendido.

Do conflituoso e degenerado espaço urbano, percebemos que os contos de Dau adquirem um interesse maior na valorização do espaço rural em situações que nos levam a refletir a mundivivência das cidades; nas suas diversas formas de expressar as religiosidades; na rigidez de suas classes sociais e no poder do régulo, contrapondo-se ao desrespeito às pessoas em uma sociedade neoliberal e com escravistas relações de emprego – “Depois o régulo bateu palmas com autoridade. Senti inveja, gostaria de ter aquela autoridade, pois lá na cidade não passo de um simples empregado que tem de aturar o desaforo do patrão, que me humilha em frente aos clientes.” (DAU, 2009, p. 30). Maneiras de viver que diferem da correria descontrolada e da competitividade insana da vida urbana contemporânea que as narrativas de Alex Dau encontram ótimos resultados.

É latente a tensão entre os espaços urbano e rural assim propostos nos textos de Dau: “Fiquei preso às minhas origens. Queria indubitavelmente redescobrir a terra que me vira nascer, encontrar a árvore que meu pai plantara, amar Midanga e esquecer a cidade que me roubara a alma” (DAU, 2009, p. 34). Apreendemos que no excerto final de “Minha alma gémea” há uma clara intenção de questionar o caos do cotidiano urbano onde vivemos, portanto, inferimos que seus contos, aproximando-se dos consagrados por Mia Couto, procuram trabalhar com as dicotomias “tradição e modernidade” e “o campo e a cidade” como espaço de reflexão crítica e matéria de engrandecimento literário. Recorremos a Francisco Noa que muito bem esclarece a presença da tradição no texto moçambicano:

a tradição é enfaticamente convocada (...) – não só como factor regulador do caos individual e colectivo das personagens, mas muito especialmente como aspiração e afirmação de uma estética particular que configura a demarcação de um determinado território literário e cultural (NOA, 2008, p. 12).

Impressiona a naturalidade como o sobrenatural surge em seus contos, expande as nossas percepções diante de situações insólitas. Segundo o Prof. Noa, há “uma lógica outra na redimensionação do mundo assente na transcendência em relação ao que pode ser palpável e verificável e que desafia as convicções e experiências do leitor, alargando ou perturbando mesmo o âmbito do verossímil” (NOA, 2008, p. 10).

Situação próxima da narrada em “Fracasso de N’Dani”, quando um leão (o espírito de um rei já falecido) disputa a mulher (Malia) que seria sacrificada com um jovem guerreiro: “Um leão rugiu, ao mesmo tempo que Samage clamava. A disputa começara, ambos disputavam a mesma mulher. Malia perdeu os sentidos quando viu o leão de juba grande avançar em direcção ao seu amado” (DAU, 2009, p. 20).

É na inserção de fatos inusitados para nós, citadinos, que o texto de Dau flui com criatividade, reforçando a assertiva do Prof. Noa em relação à ficção moçambicana contemporânea e que

não surpreende uma espécie de naturalização do sobrenatural que passa não apenas pela forma como são integradas as representações dos fenómenos transcendentes, mas sobretudo pelo modo como essa mesma transcendência se institui como totalidade enquanto ordem que inexoravelmente se impõe, da qual se precede e para a qual se caminha (NOA, 2008, p. 12).

No conto que dá título ao livro, destaca-se a renovação das tradições através da escolha do novo régulo – “(Buzueque) Tornou-se o régulo mais novo de toda a região. Com apenas vinte e um anos fora incumbido da difícil missão de dirigir os seus semelhantes (...)” (DAU, 2009, p. 36) – e a permanência da fé nas religiosidades do interior do país, demonstrando que as soluções para as adversidades podem ser encontradas em suas crenças. A aldeia passava por dificuldade, pois “os espíritos de seus ancestrais estavam desgostosos com o seu povo, por estes na última colheita terem ignorado o ritual que sempre efectuavam e que consistia em fazer oferendas aos espíritos” (DAU, 2009, p. 36).

Entretanto, a escolha do jovem régulo gera o boicote de um pretendente ao cargo, Ozias. Inescrupuloso, recorre à feitiçaria para impedir o líder legitimado de cumprir suas obrigações. Contudo, o mal jamais se perpetua e Ozias acaba sendo vitimado pela sua ação e a aldeia reencontra o caminho da perseverança:

A víbora precipitou-se então em direcção a Ozias que acompanhava o grupo, e este, perante o flagrante, precipitou-se numa fuga. O réptil perseguiu-o, alcançou-o ferindo-o de morte. O mukutto recomeçou, o céu reabriu, o sol foi espreitando gradualmente, emitindo seus raios de lus dourados, que se reflectiam nas dentaduras encardidas dos Duanganas, que sorriam felizes (DAU, 2009, p. 38-39).

Para finalizar, destacamos que é na reconfiguração dos sentidos, na valorização do ambiente rural frente às mazelas de um neoliberalismo avassalador e inspirador do que há de pior no Homem, dilacerando o respeito ao próximo, favorecendo o egoísmo e a ganância desmedida que o texto literário de Alex Dau intenta os nossos conceitos, a racionalidade para lá de questionável que nos move. As doze narrativas de “Reclusos do Tempo” contribuem, sobretudo, para mensurar o vigor da nova geração de escritores e intelectuais, galgando o seu espaço entre os grandes nomes da literatura moçambicana, mostrando que esta não morreu, mas sim sendo partícipes ativos do seu desenvolvimento enquanto sistema literário, por conseguinte, acompanhando o crescimento e a afirmação do país como nação soberana no oscilante e perverso jogo da pós-modernidade.


BIBLIOGRAFIA:

CHAVES, Rita. Eduardo White: O sal da rebeldia sob os ventos do Oriente na poesia moçambicana. In: Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. p. 163-188.

DAU, Alex. Reclusos do Tempo. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 2009.

NOA, Francisco. Tendências da actual ficção moçambicana. In: A letra, a sombra e a água – ensaios & dispersões. Maputo: Texto Editores, 2008. p. 8-14.

NOA, Francisco. A literatura morreu em Moçambique. In: A letra, a sombra e a água – ensaios & dispersões. Maputo: Texto Editores, 2008. p. 128-134.

SAID, Edward. Exílio intelectual: expatriados e marginais. In: Representações do Intelectual: as Conferências Reith de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

SARTRE, Jean-Paul. (1965) Em defesa dos intelectuais. Tradução de Sérgio Góes de Paula. São Paulo: Ática, 1994.

SECCO, Carmen Lucia Tindó. Entre sonhos e memórias: trilhas da poesia moçambicana. In: Poesia Sempre – Angola e Moçambique. Nº 23 – Ano 2006. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, p. 229-249

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