sexta-feira, 28 de maio de 2010

Vasco Martins - “run shan”


Vasco Martins - “run shan”
Por Ricardo Riso
Resenha publicada no jornal A Nação nº 143, de 27 de maio de 2010, p. 16

Exímio compositor e pianista de formação erudita, 11 álbuns gravados, 9 sinfonias, além de inúmeras peças dedicadas à música tradicional de Cabo Verde, Vasco Oliveira Martins nasceu a 12/07/1956 em Queluz, Portugal. Filho de pai cabo-verdiano e mãe portuguesa, fixou residência na ilha de São Vicente aos 9 anos de idade. Estudou em Portugal e França, retornou ao arquipélago em 1985, permanecendo até os dias atuais.

Na poesia, Vasco Martins recebeu menção honrosa nos Jogos Florais de 12 de setembro de 1976, participou da antologia “Mirabilis – de veias ao sol” e publicou os livros “Universo da ilha” (1986), “Navegam os olhares com o voo do pássaro” (1989) e “run shan” (2008), e artigos em diversas publicações. Na internet, sua poesia está no seu blog Deserto do Sul.

Com poemas atribuídos ao heterônimo Vasc d’Monteverde, run shan é um delicado livro de poesia dedicado ao Monte Verde, ponto máximo (774 m) da ilha de São Vicente. Escorando-se no profundo conhecimento das filosofias orientais, Vasc d’Monteverde recorre ao antigo poeta chinês Li Bai e aos taoístas para celebrar o Monte a partir do conceito de run shan: “significa ‘penetrar a montanha’, no sentido meditativo, contemplativo: usufruir do privilégio de estar longe da polícia geral da vida” (p. 5).

Do Monte Verde, o sujeito lírico revela o seu descontentamento com o mundo que o cerca e o inequívoco desejo de reformular sensações para acalentar o espírito. A montanha é o local de reflexão para os males da contemporaneidade: “Purificado pelas brumas do Monte Verde/ Alma de poeta caminhante contemplativo/ Encontro paz longe longe d’azafáma do mundo” (p. 18).

Das questões existenciais e metafísicas à exacerbada reverência telúrica ao Monte, o sujeito lírico apropria-se dos paradoxos do Tao Te King:

(Agora entre eu e o Monte Verde
Só as nuvens que passam,
Os momentos de plenitude
São quando deixamos de ser nós
(Para sermos nós) (p. 7)

Elementos da natureza como o ar e a aspiração por liberdade aparecem em tenras imagens de uma poesia comprometida com o etéreo. As metáforas do voo surgem envoltas a uma profunda interiorização do ser:

Deste único arvoredo vejo uma
Ilha suspensa: vou com ela
Pelo universo adentro talvez
Nalgum porto o meu espírito há-de acostar (p. 15)

A água é outro elemento invocado para criticar o caos da vida contemporânea e trazer uma nova Era:

De uma secreta fonte há-de brotar
Límpida água
Fluindo depois como uma ribeira
Purificando o coração dos homens
Pacificando o coração dos homens
Restabelecendo a Era da ternura e compaixão (p. 25)

Na procura pela harmonia “Visto uma camisa amarela/ Para condizer com a luz do fim do dia” (p. 23). O poema “Sob um pé de charuteira” mostra a gradação da meditação, da tranquilidade do shanti à passagem a um novo estágio de consciência, o samsara. Sinérgico, a confluência com o Indivisível: “Sinto:/ A montanha parece querer entrar em mim// Agora:/ Azul Abril/ Asa de borboleta nocturna” (p. 21)

Ao usar o heterônimo Vasc d’Monteverde, Vasco Martins contribui de forma excepcional para o lirismo e o universalismo da poesia cabo-verdiana. As ressignificações inspiradas na filosofia oriental demonstram prismas diferenciados que ajudam a pensar alternativas à histeria do mundo ocidental. Um canto lírico mergulhado no cosmo da natureza, de uma poesia liberta das amarras terrenas, conduzida pela ilimitada imaginação do Verbo.

Acompanhamos os versos do poeta, “Felizes brindámos/ À vida com bom vinho/ Momento eterno fugaz” (p. 26). Monte Verde: signo de pureza e alegria, onde os movimentos cósmicos se transformam para renovar o ser humano, renovar o mundo. Monte Verde, reduto do belo; run shan, páginas de encantamento a desvendar o mistério da criação.

Monte Verde!

Já dormi em cima da tua terra limpa-macia!
Celebro-te!
Perto de ti não mais tenho dúvidas!

Que muitas gerações ainda celebrem a tua beleza.
Que te protejam dos homens e das cabras.
Continuarás então a limpar a alma
Dos que sentem o apelo das brumas e do silêncio. (p. 30)

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