domingo, 5 de abril de 2009

Domi Chirongo, a nova literatura moçambicana

Domi Chirongo é um dos representantes da nova literatura moçambicana. Nasceu em 1975, ano da conquista da independência do país. Licenciado em Psicologia e Pedagogia, é membro do Sindicato Nacional dos Jornalistas (SNJ) e do Instituto de Comunicação Social da África Austral (MISA Moçambique).

Em literatura, Chirongo já publicou o romance “Um Pequeno XIDAMBANE Africano vítima das cheias”, seus poemas e contos encontram-se dispersos pela web. Além disso, o autor possui um blog onde encontramos vários poemas de sua autoria: http://www.domichirongo.blogspot.com/

Recebi de Domi Chirongo um conto e os poemas que seguem abaixo. O fortíssimo conto “Tiros ao alto” retrata o devastador cotidiano da guerra fratricida patrocinada criminosamente pela África do Sul e EUA que assolou Moçambique. De como a população de lugares ermos era atingida pela violência, obrigando-a viver em estado permanente de vigília e medo, mesmo durante as festas de final de ano. Enquanto a chegada deste sendo anunciada por tiros, metáfora de um conflito que se estenderia por longos anos, dilacerando os sonhos do povo moçambicano com as promessas não cumpridas com a independência, infelizmente.

O desencanto com os rumos tomados pela pátria no pós-independência está presente nos poemas em prosa de Chirongo. Amargura, melancolia, decepção, revolta, são marcas de um eu-liríco inconformado com o meio em que vive e faz do espaço do poema lugar de denúncia e reflexão das mazelas que impedem o desenvolvimento do país. Por outro lado, o eu-lírico interioriza-se, refugia-se em um erotismo libertador em poemas dedicados à Mulher e ao Amor, buscando no caminho ilimitado das letras substituir as agruras de uma vida de intensas dificuldades sociais e econômicas. Em seu blog, os poemas trilham por este caminho.

A presença de um eu-lírico de cariz existencial é marcante na poesia moçambicana, encontrando ecos na história poética do país. Apesar do predomínio, necessário, no que se configurou chamara de “poesia de combate” da luta revolucionária nos anos 1960/1970 e o “cantalutismo” do país independente, apreendemos sua presença em poetas como Virgílio de Lemos, Rui Knopfli, Fernando Couto e o José Craveirinha dos poemas dedicados à Maria. Na contemporaneidade Luís Carlos Patraquim, Eduardo White, entre outros, demonstram e solidificam a rica diversidade estética da produção atual sem afastar-se das críticas a uma realidade excludente e cada vez mais desumanizada.

Domi Chirongo, como representante da nova geração, parece comprometido com essa poesia, uma poesia atenta e descontente, entretanto, que ainda acredita na força utópica do Verbo e da própria poesia. Que o autor continue o seu caminho, se aprimore. Domi Chirongo, um nome para ser olhado com atenção.

Ricardo Riso

* As informações biográficas do autor foram enviadas pelo próprio e retiradas dos endereços abaixo:
http://www.african-writing.com/six/domichirongo.htm
http://aladecuervo.net/logogrifo/0605/chirongo.html

TIROS AO ALTO*

Poucos dias depois do 24 de Dezembro. O grande dia da família! Era noite. Meu pai tinha ido a confraternização do partido. Meus irmãos mais velhos tinham ido a uma banga. Em casa estavam: a minha mãe, os meus dois irmãos que sigo e eu. Lá fora tudo estava calmo.

A cidade era pacata e pacífica. Fria para um clima tropical. Não havia semáforos. Nem tráfego que justificasse. Taxi não havia. Machimbombo muito menos. O prédio mais alto tinha quatro andares. Estava um pouco distante do centro da cidade. Não me recordo duma avenida transformada em prostíbulo. Não havia Universidade. Em escadas rolantes então, nunca se havia pensado. Telemóvel, nem se sonhava que existiria. Computador, nem se imaginava. Não havia televisão. Escutávamos muito pouco a rádio. Da guerra sabíamos através de testemunhos vivos. Os nossos mortos trazidos e os estranhos abatidos. Havia também os capturados. Apresentados nos julgamentos públicos. Que acabavam com numerosas chambocadas ao vivo. Depois do discurso de arrependimento. Não me ocorre na mente alguém que tivesse sido linchado em público. Lembro-me, porém, de pessoas contando cenas piores, de rapazes obrigados a manter relações sexuais com as progenitoras. De pais obrigados a pilar os seus próprios filhos. De pessoas cortadas os lábios, alegadamente para se rirem eternamente. De mães obrigadas a cortar o nariz e as orelhas dos seus irmãos. Outros até a processos mais complexos, como cortar os membros inferiores e superiores. Tudo era por causa da guerra. Guerra que tinha outras causas!

Naquele quadro, para mim era fácil desenhar o arrependimento. Descrever um sonho. Não sei porquê, nunca cheguei a presenciar uma sessão de fuzilamento. Talvés por ser criança! Também não cheguei a perguntar aos meus pais. Nem a ninguém. Acho que nunca me importei. Das pessoas que conheci naquele tempo, não me recordo de ninguém da minha idade que tivesse assistido a um fuzilamento. Porém, a toda a hora falàvamos disso e muito mais.

As notícias circulavam na cidade através da oratura. Foi nesse contexto que soubemos quem era o Ministro da Justiça, do Interior, da Educação e Cultura, entre outros. Foi nesse contexto que soubemos da história do homem cobra. Foi nesse contexto que passamos a conviver com várias outras histórias locais. Foi também nesse contexto que perdemos muitos acontecimentos internacionais e nacionais. Um dia ainda contarei o perdido!

Como vos ia dizendo, a noite já tinha caído. Estàvamos alguns membros da família nuclear em casa. Estàvamos a escassas horas para sair de um ano, quando o som dos tiros começou a penetrar nos nossos tímpanos. Nunca nos tinha acontecido algo igual.

Os sons eram intensos, profundos, melancólicos, amargos e sem mensagem. Não se escutava som de granadas nas proximidades das nossas grades. Nem distante delas. Acredito que era som de “espera-pouco” dos filmes russos, intercalado com o de Makarov. Ah! De certeza AKM estava lá. A minha arma preferida! – O meu pai ensinou-me a manejar antes de eu ter dez anos de idade. Passei a gostar dela, apesar de nunca ter atirado a alguém.

Aquele dia apetecia-me pegar a AKM, que meu pai escondia no guarda-fato. Mas não era eu que dirigia as operações. E ainda não era uma situação extrema.

Placamos como meu pai nos havia preparado. Meus irmãos começaram a dizer a minha mãe e a mim algumas palavras de ordem. Lembro-me de nos terem informado do tratamento que os rebeldes gostariam de ter e não aquele nome de bandidos que era comum na cidade. Os meus irmãos tinham apreendido muito do discurso de arrependimento aquando dos julgamentos públicos. Compreendi naquele momento que o saber não era da escola. Nem era da Igreja. Muito menos dos Ritos de Iniciação.

Em pouco tempo tivemos uma preparação urgente para caso de sermos capturados. Não me lembro de ter tido uma licção concisa e clara em toda a minha vida. Naquele dia não choramos. Estàvamos firmes e dispostos a viver. Os gritos e tiros continuaram até ao amanhecer. A comida da nossa grande ceia ninguém tocou. Os nossos batuques, nossas marimbas e guitarras ninguém mexeu.

De madrugada, só de madrugada, chegaram os nossos irmãos mais velhos e o meu pai. Todos estavam bem animados. Tínhamos entrado num novo ano! O governo tinha decretado a autorização de uso de algumas armas de fogo nos festejos da passagem de ano, e só nós não sabíamos.
Domi Chirongo

POEMAS


SEGUNDA REPÚBLICA
No meio de discursos gratuítos e infrutíferos. Fui odeiado e velipendiado por trocar os três mosquiteiros pelos três tenores. Sim, sem questionar o presente d’então, deixei-me abraçar pelos ventos vindos até mim. E com os braços musculosos também envolvi profundamente aquela música. Num exercício intensamente romântico... Sim, jamais esquecerei aquele cenário! Hoje, eis-me aqui desarrependido, despido de cobardia, pronto p’ra ser cuspido e fuzilado por todos incoformados, adeptos incondicionais da hipocrisia e cinismo deste sítio.

PRESENTE
Assinando o nosso acordo de paz numa pátria dos outros, ninguém sabia deste presente e nem mesmo o ex-colono, admitindo mulheres no exército, imaginava o presente que se revela. Quem era eu filho? Quem era p’ra vaticinar as vidas armadilhadas nas esquinas diárias? Se realmente suspeitasse deste presente, teria substituído a metralhadora p’la caneta e papel higiénico. Quem sabe, talvés sairia menos sujo deste dinheiro presente.

RODA DE DANÇA
Antigamente fazíamos uma singela roda de gente. Em improviso entrava um a um dançando, tjambando. Ou um par. À imagem do ensaio, era substituído por outro par. Mais outro. Assim sucessivamente até a música terminar aplaudida por todos. Adolescentes lindos nós éramos! Antigamente a gente daqui era maravilhosa e simpática! Aqui era agradabelíssimo viver. Conviver. Beat estava a bater e muito bem! Hoje tudo mudou. A música baixou. Nossa face murchou. A roda parece machucada. Crianças, jovens, adultos, idosos, chacina na catedral de dança. Pneu p’ra abrandar o cheiro, petróleo p’ra acelerar o acto. Um casal linchado.


DORMIR ETERNO
O chão choramingão clamando, chamando por mim. Poeta silvestre. Declamador terrestre. Em cada desastre desta vida, abandonada por Deus e despida de toda moral conhecida! O chão choramingão, coercivo, chamando por mim, logo eu, bolas! Para um lugar incerto caminho. Não sei se correndo ou voando. Quem sabe gatinhando. Ou talvés rastejando para não ser rasteirado. Caminho. Não desejo caminhar, mas caminho.


ERRO HUMANO

Abra essa luminosa porta, amor. Deixa teu querido penetrar. Com jeito. P’ra desaguar o cansaço, brotado da jornada diária. Ingrata. Descompensada pelos berros do patrão. Salário desigual! Salafraio alimentando esta pobre cabeça desregularizada. Aliada natural do coração que te ama. Sofre meu corpo honesto. Erecto. Decidido. Determinado a felicidade até a exaustão. Abra a porta, porra! Esqueçamos os erros. Até mesmo os berros do patrão. Deixe-me aconchegado, amor.


LUSOAFINANDO

Quando axe atingiu o topo no Brasil, eu estava aqui sentado. Marrabentado até aos tímpanos. Com o pescoço saramingado, minguado pela pátria, via a via p’ra vila da felicidade transformar-se em sangue. Mas não era sangue. Era suor dos que ousaram desviajar em atmosferas virgens, mais puras que as maravilhosas ilhas nacionais. Outras até internacionais!


S/T
Estas são as cores do coração corajoso tropeçado em ti Pese embora ignores a essência delas Vale a pena chamar-te a razão Mais uma vez

O SIGNIFICADO
Atravessando a praça da Travessia do Zambeze, rapidamente o jardim, a heroína, o Hotel e o Museu te consomem. Mas por acaso saberás dizer quanto custa uma escrita desenraizada da realidade? Sabes, devias escutar a mescla de rimas ritmadas nas teclas d’alma que dão vigorosa vida ao coração. Oiça atentamente e terás o significado deste amor.


ÁGUIA D’OURO
Neste
galinheiro
águia
permaneço
preparado
p’ra amar.


S/T
Oásis do amor que hasteei em ti é um pêndulo. Guia-me na estrada vital, mais intelectual que qualquer bandeira.


TUA ...
Tua é a alma iluminando meus tristes caminhos. Não. Não posso ser inimigo dessa alma escondida em ti. Abre-te. É no teu corpo descoberto, onde encontro o indicador da felicidade. Por isso, sob o pretexto de combater o stress, tomei a forte decisão de entregar-te o meu coração.


* conto e poemas enviado por e-mail pelo autor às 5h42, dia 02 de abril de 2009.

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