sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Luíz Horácio: Perciliana e o pássaro com alma de cão

Luiz Horácio é um grande amigo, estudou comigo no curso de Letras da Universidade Estácio de Sá. É crítico literário, escritor, roteirista de cinema e gaúcho. Lançou recentemente seu primeiro romance “Perciliana e o pássaro com alma de cão” (Editora Conex, 2006). Escreve para o jornal Rascunho (http://rascunho.rpc.com.br/index.php) e outros sites.
A seguir alguns poemas e uma crítica do romance.


Escrevo porque sou um covarde, escrevo porque não sei amar, escrevo porque meus sonhos me acordam, escrevo porque a ausência me machuca, escrevo porque tenho medo da morte, escrevo porque aprendi a sofrer, escrevo porque detesto a palavra esperança e pra fugir da palavra lembrança, escrevo pra não voltar a ser criança, escrevo pro meu pai, escrevo pra uma mulher que eu vi criança, escrevo porque tenho medo de dormir sozinho com a luz apagada, escrevo pra poder acordar, escrevo pra aprender a amar, escrevo pra fugir, escrevo mesmo sabendo que não irão me respeitar.


BECOS E SAÍDAS
Por teimosia e covardia sobrevivo
enquanto a cidade transpira fumaça e medo
Insone, mal respira saturada de sons
Sangue filtrado na hemodiálise permanente
Das tvs a cabo e computadores
Sabor mudo e voz amarga
A cidade implora por socorro
Teme a jovialidade de seu mar
Feito louco escrevo mais um livro
Quem se atreverá a lhe falar de amor?



Mía soledad
nacio conmigo
traendo voracidad
miedo y prisa.
Cuando pensé
haberla olvidado
suyas alas gigantes
ya ensombreciam mi alma
Ahora
cuando todo que me gusta
me hace llorar
las horas
transbordan adioses
mientras los pájaros
llueven colores
yo te quiero
pero mía soledad
aconseja serenidad
no decirte “te amo”
pues la he perdido.



Aún así
El extraño
hombre envejecido
estaba solo,
dibujava
en la sombra
de la noche prisionera
su juventud,
apretando el dolor
contra
las ventanas cerradas.
Quisera
no haberle visto
más que las manos,
ojos del adiós,
como si fueram armas.
Ya no tenia
ningún interés
ya no lloraba
estaba solo
repitiendo aquella
indomable noche
aún así
amaba.

Com a alma de Veppo - Francisco Dalcol
Escritor gaúcho radicado no Rio lança livro em que faz referência ao contato que teve com o poeta Prado Veppo em Santa Maria.
Texto retirado de http://www.olobo.net/index.php?pg=colunistas&id=532

No livro Perciliana e o Pássaro com Alma de Cão, o leitor poderá ser surpreendido pelo nome de um personagem. Quem conhece um dos grandes nomes da literatura santa-mariense não escapará da dúvida que aparecerá na página 54: o menino Veppo guarda alguma relação com o escritor Prado Veppo (1932-1999)?

Não é por acaso que o escritor Luíz Horácio Rodrigues, 49 anos, resolveu dar ao personagem o nome do poeta e médico nascido em Porto Alegre e que adotou Santa Maria como lar familiar, profissional e inspirador. O autor de Perciliana e o Pássaro com Alma de Cão nasceu em Quaraí e hoje vive no Rio de Janeiro. Nos anos 70, passou por Santa Maria e acabou conhecendo o poeta que até hoje o acompanha nos rumos que sua vida ganha:

- Prado Veppo era meu professor de literatura no cursinho pré-vestibular em Santa Maria. A figura dele logo me chamou a atenção, por ser uma pessoa que se vestia de branco e ensinava com tanto amor. Mas era algo que eu não sabia definir. Eu gostava muito do jeito com que ele falava sobre literatura, com propriedade e simplicidade. Era o que eu queria ser - conta Horácio, cuja família vive hoje em Rosário do Sul.

Como aluno e professor, os dois nunca haviam tido maior contato. Até que, em um dia de 1977, Horácio passava pela Dr. Bozano e viu Prado Veppo caminhando.

- Fui correndo à Livraria do Globo e comprei o livro Espada de Flor, do Veppo. Saí e fui atrás para ele autografar. Até hoje guardo o exemplar - conta.

Além do personagem Veppo, obra traz a dedicatória que autor ganhou do poeta

O autógrafo também ganhou referência no mesmo capítulo em que é apresentado o personagem Veppo em Perciliana e o Pássaro com Alma de Cão. Na página 49, Santiago (pai de Veppo) ganha do pai Hildebrando um livro que havia conseguido com a dedicatória do autor - não revelado na trama (leia ao lado).

Horácio usou a mesma frase escrita por Prado Veppo em 1977 no livro Espada de Flor, porém adaptada ao personagem: "Ao Santiago, na esperança de que sempre tenha tempo para a literatura e na expectativa de que este livro não seja uma perda de tempo."

- Logo depois do meu contato com Veppo, parti de Santa Maria e perdi o contato dele - recorda Horácio.

Já nos anos 80, ele voltou a topar com Veppo, mais uma vez caminhando. Foi na Rua da Praia, em Porto Alegre. Após 15 anos, quando começou a escrever, Horácio viu a dedicatória se tornar realidade.

- Pedi para meu pai descobrir o telefone do Prado Veppo. Liguei e disse que eu o amava e que ele era muito importante na minha vida. O Veppo respondeu algo tipo "como assim?", "estou muito velho para ouvir esse tipo de coisa". Depois, quando fiquei sabendo que havia morrido, fiquei muito triste. Mas tive uma grande satisfação, pois pude dizer a ele o que sentia e que havia aprendido a lição. Ele continuou sendo uma pessoa muito importante para mim.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

III ENCONTRO DE PROFESSORES DE LITERATURAS AFRICANAS

Terminou no sábado, 24/11, o III Encontro de Professores de Literaturas Africanas – Pensando África: Crítica, Ensino e Pesquisa, organizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense e Fundação Biblioteca Nacional. O megaevento reuniu escritores, críticos e professores de diversas áreas e contou com a presença de nomes Luandino Vieira, Alberto da Costa e Silva, Boaventura Cardoso, Ana Mafalda Leite, Rita Chaves, Laura Padilha, Luís Carlos Patraquim, Simone Caputo Gomes, Paula Tavares entre tantos outros nomes.

Aqui presto meu agradecimento a todos aqueles que, de alguma maneira, contribuíram para a minha participação no Encontro com a comunicação Letras e telas encarceradas: a reclusão libertadora na arte de José Craveirinha e Malangatana Valente:

Profa. Dra. Norma Sueli Rosa Lima (UNESA/UFRJ), Profa. Dra. Carmen Lucia Tindó Secco (UFRJ), Profa. Dra. Maria Teresa Salgado (UFRJ), Profa. Dra. Simone Caputo Gomes (USP), Cláudia Cunha, Gisela Ferreira, Ana Lúcia, Prof. Dr. Cláudio Capuano (FERLAGOS), Fernanda Menininha, Zetho Cunha Gonçalves, Sabrina Oliveira, Cristina Maya, Iasmin Freire, Ouri Pota Pacamutomdo, Profa. Dra. Laura Padilha (UFF), Profa. Dra. Terezinha Val, Profa. Rosemery Granja (UNESA), Prof. Dr. Mauricio do Carmo (UNESA), Profa. Dra. Gilda Korff (UNESA), Prof. Carlos Stowasser (UNESA), Alex Vianna, Andrea Bedeschi, Rafael Jurado, Ilana Braia, Priscilla Arraz, Roberto Chichorro, Nelson Saúte, Cláudia Breviário de C., Arsenio, Luíz Horácio, aos meus familiares e amigos que não foram citados para que a relação não ficasse extensa e cansativa.

Muito obrigado! Ricardo Riso apresentando a Comunicação Letras e telas encarceradas: a reclusão libertadora na arte de José Craveirinha e Malangatana Valente no III Encontro de Professores de Literaturas Africanas, realizado na UFRJ em dia 22/11/2007.

Acompanhando a Profa. Fernanda Angius (Instituto Camões) e os comunicantes Fábio Santana Pessanha (UFRJ - comunicação: Geogonia de Duarte Galvão) e Viviane Mendes de Moraes (UFRJ - comunicação: Guita Jr. e Manuela Cruz: memórias, sonhos e incertezas moçambicanas).

Ricardo Riso e a Profa. Fernanda Angius (Instituto Camões), conviveu e trabalhou com Craveirinha no jornal moçambicano Brado Africano, e é amiga de Malangatana.

Com a Magnífica Profa. Dra. Laura Padilha (UFF), autora do livro Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX.

Com a Profa. Dra. Simone Caputo Gomes (USP), especialista em Cabo Verde e grande amiga que tanto me ajuda nos assuntos sobre o arquipélago.

A Profa. Dra. Rita Chaves (USP) autografa o livro A formação do romance angolano - o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX.

Esta é a escritora angolana Paula Tavares, a maior voz feminina dos países africanos de língua portuguesa. Foto tirada após ser presenteado pela autora com o seu primeiro livro: Ritos de Passagem.
Ricardo Riso e o atencioso escritor moçambicano Luís Carlos Patraquim, importante nome da poesia moçambicana do pós-1980, autor de Lidemburgo blues e tantos outros.

Vera Duarte, escritora cabo-verdiana, autora de Arquipélago da Paixão, e a Profa. Dra. Simone Caputo Gomes (USP).

Ricardo Riso, Zetho Cunha Gonçalves (escritor angolano de A palavra exuberante), Ana Lídia e colega.

Profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC/MG) e alguns colegas da pós-graduação África/Brasil - laços e diferenças: Cláudio Capuano, Cláudia Cunha, Geny, Ricardo Riso, Cristina, Ana Lídia, e as karinganas Sílvia e Cláudia Marques (agachada).

Da direita para a esquerda: as contadoras de estórias do Karingana ua Karingana: Sílvia, Alyxandra e Cláudia Marques. Ao fundo as professoras Laura Padilha (UFF), Carmen Lucia Tindó Secco (UFRJ) e Simone Caputo Gomes (USP) na palestra Mesa das Escritoras - III Encontro de Professores de Literaturas Africanas.

Mesa das Escritoras - Odete Semedo (Guiné Bissau), Paula Tavares (Angola), Vera Duarte (Cabo Verde), Maria Aparecida Santilli (coordenadora), Conceição Lima (São Tomé) e Ana Mafalda Leite (Moçambique) no III Encontro de Professores de Literaturas Africanas, dia 22/11/2007.

A Profa. Dra. Maria Aparecida Santilli e o monstro sagrado da literatura angolana: José Luandino Vieira.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Craveirinha e Malangatana - Comunicação UFRJ

LETRAS E DESENHOS ENCARCERADOS: A RECLUSÃO LIBERTADORA NA ARTE DE JOSÉ CRAVEIRINHA E MALANGATANA VALENTE*
RICARDO SILVA RAMOS DE SOUZA1

RESUMO: A presente comunicação propõe-se a analisar a produção artística de José Craveirinha, com o livro Cela 1, e a série Desenhos de prisão, de Malangatana Valente, que retratam o recrudescimento da violência imposta pelo regime ditatorial português. O objetivo central é estabelecer um diálogo entre as duas obras realizadas quando os artistas eram prisioneiros nas cadeias da pide, e como a experiência da asfixia do cárcere serviu de inspiração para denunciar as mazelas da guerra, a reconstrução da memória coletiva e a afirmação de um Moçambique independente.


*Comunicação apresentada no III Encontro de Professores de Literaturas Africanas, realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no dia 22/11/2007.

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro

Esta comunicação aborda um período marcante da história moçambicana, iniciado com a guerra colonial em 25 de setembro de 1964, em que os amigos e parceiros de cárcere José Craveirinha, com Cela 1, e Malangatana Valente, com Desenhos de Prisão, em condições adversas, imortalizaram a triste e fundamental passagem da luta pela independência, ao registrar a violência exacerbada nos cárceres do regime ditatorial português em suas obras.

Os poemas de José Craveirinha em Cela 1 referem-se à produção literária que os críticos das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa denominam como a poesia de combate ou de protesto, momento histórico em que os temas políticos e sociais eram necessários. Porém, os dois artistas não reduziram seus trabalhos ao estilo panfletário comum à época. Em meio à revolta justificada por séculos de injustiças sofridas por causa da ação colonizadora, os poemas apresentam a pluralidade cultural que compõe o corpo moçambicano e abordam uma postura contrária ao regime salazarista, que esmagava as manifestações tradicionais locais.

No período citado, o sujeito-lírico versa sobre o desejo de independência da nação. Segundo Alfredo Bosi, “a poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da sociedade”1, enquanto o crítico Manuel Ferreira descreve assim a situação do escritor:

“Nesta fase o escritor pensa a sua terra em termos de pátria, nação, rejeita o Outro – o colonizador –, e está determinado a uma prática literária integrada na nova situação, toda ela voltada, de vez, para a conquista da libertação nacional. Assume-se como homem inteiramente livre, repensa as suas raízes culturais, faz o reencontro consigo próprio e integra-se no destino colectivo de sua gente. (...) o escritor, após ter adquirido a consciência de sua condição de colonizado, liberta-se completamente da alienação e a sua prática literária cria a sua razão de ser na expressão das raízes profundas da realidade social nacional entendida dialecticamente.”2

Os poemas de Cela 1 foram escritos, em sua maioria, na prisão do poeta durante os anos de 1965 a 1969. Apesar de termos o cuidado em não misturar a vida do autor e a obra na análise literária, podemos, como afirma Rita Chaves, dizer que:

“(...) a força da História não deve ser minimizada na abordagem da literatura, em se tratando da produção dos países de língua portuguesa a compreensão desse peso merece atenção especial. Em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, o contato com os dilemas que a História arma é tão vivo e direto, que a sua dimensão surge visivelmente concreta no cotidiano das pessoas que escrevem e sobre as quais se escreve.”3

No caso de Craveirinha torna-se pertinente esta orientação, pois é com “o poeta e sua experiência que é por ele convertida em matéria poética, o que explica o interesse que ele ganha na abordagem de alguns dos caminhos de sua escrita”4. Logo, a arte é usada como forma de denunciar e conscientizar a sociedade. Segundo Antonio Candido: a “arte coletiva é a arte criada pelo indivíduo a tal ponto identificado às aspirações e valores do seu tempo, que parece dissolver-se nele”5. E é o que depreendemos nas obras do Velho Cravo e de Malangatana, que contam a seguir a experiência no cárcere:

“Lá estive eu na engorda, sem fazer nada. Eu e os amigos também, tão poetas no sentido negativo como eu: por exemplo, Rui Nogar e Malangatana. Só que o Malangatana é para mim um caso muito especial. Estivemos na mesma cela. Quando eu fui para esta cela, era uma cela de castigo, já pequena para mim sozinho; meteram então o Rui, e ficou mais pequena ainda; depois, incrivelmente ainda coube o Malangatana. Desde então, o que me espanta no Malangatana não são os seus quadros: é que ele conseguiu engordar lá dentro (risos). Deve ter havido muito poucos revolucionários na História iguais ao Malangatana. Cantava, assobiava, dormia: mas que grande paz de consciência é essa? (...)”6

“Mesmo na altura de 1961/62 tinha uma actividade política muito grande. Foi quando fiz parte do grupo em que o Craveirinha trabalhava clandestinamente, depois em 1963/64 as atividades crescem, também com o Luís Bernardo Honwana e outros. E somos presos, com o Rui Nogar, (...) Fomos presos juntos, alguns em celas diferentes. (...) fiquei pouco tempo na prisão comparado com muitos correligionários que ficaram de quatro a sete anos. Eu fiquei dezoito meses, (...) A base do julgamento foi pertencermos, sermos simpatizantes, da FRELIMO. (...)”7

O envolvimento com o partido político FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) se dá no início de sua formação, sendo Craveirinha figura capital na sua construção:

“A ligação com a FRELIMO surge muito naturalmente, tinha que surgir (...) Então quem monta a sede da FRELIMO ali no sul fui eu. Desculpe a imodéstia. (...) Então aliciei alguns, como o Rui Nogar, como o José Parente (...) O Malangatana fui eu que o aliciei, e o actual (fevereiro/1990) embaixador moçambicano em Portugal. (...)” 8

Nos poemas e desenhos aqui analisados, veremos o espaço físico do cárcere e o que envolve o cotidiano do preso como fator motivador para os dois artistas. Contra a razão imposta por séculos de colonização européia, o espelhamento dos versos de Craveirinha subverte o barroco tradicional e denuncia as mazelas e fraturas sofridas pelos moçambicanos, escancarando a violência da famigerada polícia política salazarista, a PIDE. O cárcere é exposto de diversas maneiras nos poemas de Craveirinha. Em meio à indignação e revolta, o sujeito-lírico, em ferozes versos, neobarrocamente, mostra este espaço em metáforas insólitas e surreais, em um autêntico surrealismo africano, “bastante diverso do europeu, porque constituído com o esperma da criação e do conjuro cósmico”9:

“(...) E rectangulizados
os pensamentos tuberculizam-se em esquadria
e uns atrás dos outros aos cardumes de náuseas
sangram cotovelos nos ladrilhos.”
10

“Noites enjoadas de um milhão de angústias
racham-me as unhas na lascívia das macias
paredes de cimento (mentira não são macias) caiado
e no amoroso cárcere ensurdecedor de silêncios (...)”
11

A ironia, que beira o sarcasmo, aparece para apresentar a cela. O isolamento é cantado de diversas maneiras e a relação do poeta com o cárcere é exposta com “larga utilização de contrastes, como forma de fazer ressaltar, com maior brutalidade, o sentido dos versos”12.

“O mundo ensurdecedor de moscas de silêncios
os pulsos mata-fomes do grande rato verde do medo
o imaginário omnipotência dos nossos feitiços impossíveis aqui
e o táctil gosto das pontas dos dedos nas paredes (...)
E por dentro a porta ao meio
mais cega
mais surda
e mais muda do que nós
no papel autêntico
de porta fechada.”
13

O pintor Malangatana Valente ilustrará o cárcere em um expressionismo voraz, realizado com parcos recursos. Os desenhos são simples, sem as cores impactantes e os excessos alegóricos que caracterizam as obras do pintor, entretanto apresentam o olhar atento contra o dilaceramento de sua cultura:

“Ora violentos a violência praticada na prisão ora sonhadores o sonho de liberdade de qualquer preso ora com recurso às suas mais fundas origens culturais as da sua aldeia e do seu povo ora evocando as famílias e as tragédias quotidianas ora virados para o futuro imaginando o seu país livre e independente esses desenhos aparecem-nos, na sua diversidade, como um claro retrato da vida e dos sonhos de Malangatana e de seus companheiros de prisão e de luta.”14

Em desenhos como “Sala de castigo da PIDE”, o espaço exíguo ao qual o preso é submetido é contrastado com o seu tamanho desproporcional, denunciando os maus tratos sofridos. Carmen Lucia Tindó Secco cita, a respeito da pintura de Malangatana, a “ausência de vazios que tenta suplementar as lacunas provocadas pelo processo de neutralização das alteridades, ao longo de séculos de submissão”15, que, nesta série, é mostrada nas celas lotadas, em desumana condição. Por outro lado, apresentam a mobilização dos moçambicanos na luta contra o colonialismo, como em “Pavilhão 9 da Cadeia da Machava da PIDE”.

Sala de Castigo da PIDE

No cárcere, Craveirinha mostra-nos um tempo próprio do preso no seu cotidiano de “ausência citadina”. Em uma linguagem paradoxal e muitas vezes sinestésica, o sujeito-lírico versa sobre a angústia da espera, o silêncio e o barulho, as informações passadas sob os olhares dos carcereiros, o breve contato com a família:

“(...) Em centésimos de segundo
os nossos olhos privilegiados
decifram estritas instruções
de mil e duzentas palavras. (...)”
16

“(...) e depois as noites de vinte e quatro horas a fio
ensurdecedoras de silêncio dos ponteiros de angústia (...)”
17

“(...) o chão exausto dos passos
relojoados centímetro a centímetro ida e volta
na perspectiva de mundos de nada todo o dia. (...)”
18

“(...) – ‘São 30 minutos e acabou!’ (...)
Mas a cada visita (...)
Mais sessenta segundos com a família
Não era mais nada
... ERA OURO!”
19


Uma outra presença marcante nestas obras é o nefasto torturador, os agentes da PIDE encarregados de interrogar os presos. Com ódio e violência desmedida, estes agentes “de olhos raiados de sangue”20 procuravam minar a auto-estima dos que ali se encontravam sob suas garras, utilizando variadas e repugnantes práticas de tortura denunciadas na escrita corrosiva do poeta:


“(...) E ao ritmo
da contradança de joelhos nus nem parece
que algures há cartilagens sangrando
a esfolar-se no chão das cadeias.”
21


“(...) Quietos
quatro horas seguidas
comodamente sentados numa cadeira
ao milésimo século de perguntas (...)


Mas...
não falamos!


Nossos
sorrisos moçambicanizados
previamente a carícias
de cacetadas.

E
as bocas inchadas
a sangue natural imitando o vermelho
torna autêntico este verso.”
22

A desprezível figura do torturador foi ilustrada por Malangatana, recebendo a alcunha de “Chico Feio, o espancador da PIDE”. A degradante personagem é mostrada em cenas de violência extrema contra os prisioneiros, violência motivada pela ditadura salazarista, revelando o ódio que os agentes possuíam pelos revolucionários, como em “O prisioneiro” e “A cela”. Na ilustração supracitada, em “Devoragem” e “Pavilhão da Cadeia da Manchava, espancamento”, Malangatana substitui os espíritos das religiosidades ancestrais. Os seres fantásticos como os xicuembos, lumpfanas e shetanis que vivem no imaginário fragmentado dos seus compatriotas, tornam-se imensas e assustadoras figuras híbridas, com olhares alucinados, garras e dentes afiados. São monstros materializados, do e no tempo presente, os agentes da PIDE. Como observou Julio Navarro: “sem perder a qualidade estética, pelo contrário, Malangatana começa a integrar no seu imaginário aquela ligação dos seus monstros (...) com o monstro real: o colonialismo”23.

Chico Feio, o espancador da PIDE

O prisioneiro

A cela

Devoragem

Pavilhão da Cadeia da Manchava, espancamento

Entretanto, a resistência à tortura é ilustrada por Malangatana em “Apoio moral aos espancados cela IV” e motivada por Craveirinha com impactantes versos a clamar a união e a afirmação dos moçambicanos, e a inverter a relação com o carcereiro:


“(...) E no sofrimento deste prédio
nós os presos e os que não foram presos
conseguimos o seguinte consenso:
– Voz de prisão aos carcereiros!”
24


“(...) Não sou luso-ultramarino
SOU MOÇAMBICANO!


Será suficiente esta confissão
sr. chefe dos cassetetes
da 2ª brigada?”
25


“(...) Pátria:
o nosso próprio receio
leva-nos ao cúmulo da fúria
mas ao carcereiro o próprio medo
fabrica para toda a polícia
o auge do desespero.”
26


O projeto de nação em sua poesia surge antes da participação na FRELIMO e da guerra colonial. Para Fátima Mendonça o Velho Cravo é “o primeiro escritor a apresentar o espaço geográfico moçambicano em termos de nação”27, e complementa afirmando que:


“O elemento de afirmação nacional que emerge, desde o início, da poesia de José Craveirinha, é pois gerado e produzido por um real definido e marcado, porventura apreendido pelo poeta numa fase em que a sua configuração não é perceptível a muitos: o poeta limitou-se a antecipar-se no tempo, captando e prevendo, assumindo-se finalmente como o ‘fabricante de vaticínios infalíveis’.”28


Portanto, a Pátria é cantada em várias formas, sendo motivo para agregar os moçambicanos sedentos por liberdade:


“(...) Mas
a arma da paixão mais secreta
dos filhos que amam a terra-mãe cem por cento (...)”
29


“(...) Este infinito sentimento
no recíproco amor a homem e mulher
para jamais nos esquecermos de vez
do amor dos amores mais amados
o amor chamado pátria!”
30


“(...) percorro este universo emigrando
diariamente no interior africano
deste território minha pátria
escondido no meu país.”
31


Malangatana Valente recorre aos sonhos para suportar as agruras do colonialismo em desenhos como “Sonho, nota de soltura” e “Sonho de prisioneiro, almofada de grilhetas”. Já José Craveirinha versa sobre o desejo de almoçar com a família em casa “depois do grande sonho conseguido”32. Sonho que somente se concretizaria em 25 de junho de 1975, com a efetiva participação dos dois artistas que viram Moçambique se tornar independente. Com isto, o livro Cela 1 foi publicado em 1980 e a série Desenhos de prisão foi exposta como parte das comemorações do 70º aniversário de Malangatana Valente em 2006, imortalizando em suas obras a terrível experiência do cárcere na luta contra o colonialismo.


Sonho, nota de soltura

Sonho de prisioneiro, almofada de grilhetas


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BALTAZAR, Rui. Sobre a poética de José Craveirinha. Via Atlântica, São Paulo, n. 5, p. 88-107, 2002.


BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.


CANDIDO, Antonio. A literatura e a vida social. In: Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.


CHABAL, Patrick. Vozes moçambicanas – literatura e nacionalidade. Coleção Palavra Africana. Lisboa: Editora Veja, 1994.


CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.


CRAVEIRINHA, José. Cela 1. Lisboa: Edições 70, 1980.


FERREIRA, Manuel. O discurso no percurso africano 1. Lisboa: Plátano, 1989.


LEITE, Ana Mafalda. A fraternidade das palavras. Via Atlântica, São Paulo, n. 5, p. 20-28, 2002.

NAVARRO, Julio. Uma gula insaciável. Catálogo da exposição Malangatana: de Matalana a Matalana. Lisboa: Instituto Camões, 1999. p. 51.


SECCO, Carmen Lucia Tindó. A apoteose da palavra e do canto: a dimensão “neobarroca” da poética de José Craveirinha. Via Atlântica, São Paulo, n. 5, p. 40-51, 2002.



SECCO, Carmen Lucia Tindó. Craveirinha e Malangatana: cumplicidade e correspondência entre as artes. In: A magia das letras africanas: ensaios escolhidos sobre as Literaturas de Angola, Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE Graph Editora, 2003.


REFERÊNCIA INTERNET:
FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES.
http://www.fmsoares.pt. Acesso em 26 de outubro de 2006.

NOTAS:

1 BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977. p. 143.
2 FERREIRA, Manuel. O discurso no percurso africano 1. Lisboa: Plátano, 1989. pp. 32-33.
3 CHAVES, Rita. José Craveirinha: a poesia em liberdade. In: Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. p. 139.
4 Idem, ibidem. p. 141.
5 CANDIDO, Antonio. A literatura e a vida social. In: Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. p. 35.
6 CHAVES, Rita. Entrevista: José Craveirinha. In: Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. pp. 241-242.
7 CHABAL, Patrick. Entrevista: Malangatana Valente. In: Vozes moçambicanas – literatura e nacionalidade. Coleção Palavra Africana. Lisboa: Editora Veja, 1994, pp. 207-208
8 CHABAL, Patrick. Entrevista: José Craveirinha. In: Vozes moçambicanas – literatura e nacionalidade. Coleção Palavra Africana. Lisboa: Editora Veja, 1994. pp. 99-100.
9 SECCO, Carmen Lucia Tindó. A apoteose da palavra e do canto: a dimensão “neobarroca” da poética de José Craveirinha. Via Atlântica, São Paulo, n. 5, p. 45, 2002.
10 CRAVEIRINHA, José. Cela 1. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 73.
11 Idem, ibidem, p. 15.
12 BALTAZAR, Rui. Sobre a poética de José Craveirinha. Via Atlântica, São Paulo, n. 5, 2002, p. 100.
13 CRAVEIRINHA, José. Cela 1. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 47.
14 FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES. http://www.fmariosoares.pt. Acesso em 26 de outubro de 2006.
15 SECCO, Carmen Lucia Tindó. Craveirinha e Malangatana: cumplicidade e correspondência entre as artes. In: A magia das letras africanas: ensaios escolhidos sobre as Literaturas de Angola, Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE Graph Editora, 2003, p. 226.
16 CRAVEIRINHA, José. Cela 1. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 84.
17 Idem, ibidem, p. 76.
18 Idem, ibidem, p. 73.
19 Idem, ibidem, p. 68.
20 Idem, ibidem, p. 49.
21 Idem, ibidem, p. 10.
22 CRAVEIRINHA, José. Cela 1. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 14
23 NAVARRO, Julio. Uma gula insaciável. Catálogo da exposição Malangatana: de Matalana a Matalana. Lisboa: Instituto Camões, 1999. p. 51.
24 CRAVEIRINHA, José. Cela 1. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 72.
25 CRAVEIRINHA, José. Cela 1. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 38.
26 Idem, ibidem, p. 28.
27 MENDONÇA, Fátima. O conceito de nação em José Craveirinha, Rui Knopfli e Sérgio Vieira. Via Atlântica, São Paulo, n. 5, 2002, p. 54.
28 Idem, ibidem, p. 54.
29 CRAVEIRINHA, José. Cela 1. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 17.
30 Idem, ibidem, p. 21.
31 Idem, ibidem, p. 81.
32 CRAVEIRINHA, José. Cela 1. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 35.

CABO VERDE: Profa. Dra. Simone Caputo Gomes

Já está no ar sítio da Profa. Dra. Simone Caputo Gomes (Universidade de São Paulo) sobre a literatura e cultura de Cabo Verde:

http://www.simonecaputogomes.com/

A Profa. Simone, generosa como sempre, disponibiliza seus textos, mapas, fotos, links sobre o país e muito mais.

Visita obrigatória para quem quer se aprofundar na cultura de Cabo Verde.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Nelson Saúte – Os Narradores da Sobrevivência

Após a independência moçambicana em 1975, houve um curto período de euforia com a libertação, mas desestabilizado com a guerra civil entre Frelimo, partido que fez a revolução, e Renamo, apoiado pela África do Sul, Rodésia e tendo a colaboração não-declarada do governo norte-americano. Conflito que mergulhou o país numa crise sem precedentes em sua história, prolongando o sofrimento causado pelos séculos de ação colonizadora portuguesa.

A crueldade da situação vivenciada pelos moçambicanos deixou marcas profundas naqueles que participaram desses terríveis anos, que viram a violência aumentando cada vez mais, as mortes tornando-se rotineiras, os habitantes do interior refugiando-se na capital (os deslocados) e os mutilados pelas famigeradas minas tropeçando pelas ruas da capital Maputo. E o que é pior, a desilusão com as promessas não cumpridas pela revolução, que não concretizou os projetos de maior igualdade social, distribuição de renda, fim da fome e diversos outros problemas estruturais, que custaram tantas vidas durante a guerra colonial nos anos de 1964 a 1975.

É no clima de desencanto com os caminhos trilhados pelo país que, nos anos 1980, emerge a literatura de Nelson Saúte. Contemporâneo da revista Charrua, publicação que apresentou novos paradigmas ao corpo literário moçambicano e lançou nomes como o de Eduardo White entre outros, que Saúte se aproxima da literatura. Através de suas atividades no jornalismo, Saúte desempenha um importante papel ao documentar os nomes que formaram e ainda formam a literatura de Moçambique. Entrevista grandes escritores, organiza antologias de poesia e contos, e, em seguida, publica suas experiências nas letras.

Nascido nos subúrbios da então Lourenço Marques, atual Maputo, em 1967, Nelson Saúte tem a língua portuguesa como o principal e único idioma. Não fala nenhuma língua de etnia local, nem o ronga, língua predominante na região onde foi criado. Portanto, é testemunha viva da história recente do país: participou como “pioneiro” nos anos de euforia com o pós-independência, vivenciou o longo período de guerra civil passado durante a adolescência e juventude, que só encerraria com o acordo de paz de 1992.

Tive a oportunidade de assistir a uma palestra de Nelson Saúte no ano passado. Naquela época, a editora Língua Geral lançava uma série de livros infantis, intitulada Mama África, e Saúte assinava um dos livrinhos - O homem que não podia olhar para atrás - com ilustrações de Roberto Chichorro. Impressionou-me, durante a sua fala, a melancolia e amargura ao comentar sobre o seu passado durante a guerra, o que só viria a compreender melhor com a leitura do romance que comentarei a seguir, Os Narradores da sobrevivência (Publicações Dom Quixote, 2000).

O romance se passa nos difíceis anos da década de 1980, época de sofrimento extremo para Moçambique, um país arrasado pela violência, e pela desesperança e desencanto de seu povo com o irreal cotidiano. Como afirma o narrador: “Anos de uma grande ilusão destruída diante dos nossos olhos por mãos humanas como a nossa”. (SAÚTE, 2000, p. 141)

É a história do desencontro de Marimbique, jovem moçambicano recrutado para lutar pelos ideais da revolução, e sua mãe, a velha Xinguavilana, e o posterior reencontro no enterro de ambos. Metáfora do dilaceramento da sociedade moçambicana, que via as famílias tendo seus destinos separados e/ou encerrados pelas ações deploráveis da guerra.

Depois de vários anos afastado de sua cidade natal, Maputo, Marimbique retorna em um caminhão trazendo trinta e tantos corpos mortos, os quais ele é o responsável:

“O camião que Marimbique escoltava trazia a notícia mais dilacerante da guerra. Três dezenas de cadáveres: pernas, braços, intestinos, ventres, olhos, orelhas, pedaços de carne, corpos macerados. Pela primeira vez a guerra chegava à capital – marchava vagarosa com o camião que entra na cidade ao entardecer”. (Ibide, Ibidem, p. 15)

Trata-se do primeiro momento que a capital, ou a “Nação” como é chamada pelos moçambicanos, com o que a guerra tem de mais cruel: os seus mortos. Até então, a guerra para os moradores de Maputo resumia-se a racionamentos: “Que era a guerra na grande cidade? A falta de energia, a ausência de água”. (Ibide, Ibidem, p. 15) É a partir do reencontro de Marimbique e da presença dos mortos na cidade que o romance trilhará seu caminho.

Diante de tantas desgraças vivenciadas por Marimbique, ele recorre constantemente à memória para buscar um pouco de sossego às vistas cansadas de dor, medo e morte. O jovem está acompanhado pelo motorista, contudo os dois não se comunicam, conheceram-se para cumprir a triste missão. O filósofo Walter Benjamin apontava para a dificuldade em narrar que os novos tempos apresentavam, a violência exacerbada da guerra seria uma das motivadoras desse quadro, pois os soldados quando retornavam das batalhas nas trincheiras permaneciam mudos, incapazes de se comunicar após o convívio desesperador com os mortos e mutilados. Daí o amparo na memória, nas lembranças da infância para suportar as durezas trazidas pelo ódio e matança desenfreada entre os moçambicanos:

“Quando atravessou o Alto-Maé acenou à Estrada da Circunvalação, deste modo ele saudava a infância. Lembrou os canaviais e os carros alegóricos que atravessavam a Avenida de Angola. Estes partiam do Largo Albasine, desciam os foliões em direcção ao Bairro do Aeroporto. Todo aquele mundo labiríntico dos subúrbios acordava lembranças muito nítidas. As coisas que poderiam ter acontecido na véspera por certo deslembrava. Tal é o prodígio da memória, que nos faz recuar a tempos imemoriais e é incapaz de nos revelar uma imagem do dia anterior. No caso, ele tinha razões mais do que razoáveis para se refugiar no tempo – ou templo? – perdido. A infância, a adolescência.” (Ibide, Ibidem, pp. 38-39)

A devastação causada pela guerra às mentes das pessoas, mantém assombrados os pensamentos, a condição miserável do presente faz com que o narrador vasculhe a memória para acalantar a existência:

“As lembranças constantes de lugares ou situações que nos tenham sido queridos denunciam que o presente pouco acrescenta às nossas vidas. Abraçamo-nos ao passado, marcados por uma vontade dilacerante de o reviver constantemente ou, de forma intermitente, momentos inolvidáveis, que já não nos pertencem, a não ser no domínio inatingível da imaginação.” (Ibide, Ibidem, p.21)

A partir daí, a narrativa procura remontar o passado de Marimbique em situações vivenciadas pelas pessoas com quem convivia ou em suas próprias lembranças, entrecruzando-as com a mãe e a sua luta persistente, inglória para todos, em rever o filho desaparecido, o que a faz ser agressiva com os que querem convencê-la da morte do rapaz:

“Morto deixa corpo. Quem disse que um morto desaparece assim mesmo? (...) Nesta vida eu já me cruzei várias vezes com a morte. Todas as vezes ela deixou rasto, não é agora assim. Como se comprova que meu filho morreu?” (Ibide, Ibidem, pp. 19-20)

A morte passa a ser uma rotina no cotidiano dos moçambicanos, que são alvejados em cruéis emboscadas nas estradas, nas minas espalhadas pelo país e nos combates entre os soldados. Torna-se um terrível hábito ter que enterrar os entes queridos, o absurdo da situação chega a atingir o nível extremo de se enterrar apenas os pertences de um morto, pois muitos foram deslocados dos seus locais de origem e seus corpos jamais seriam revistos. Tal proposta é feita à mãe de Marimbique, que denuncia o desrespeito com os que se foram e a insensibilidade daqueles que se acostumaram com a desgraça e vivem dela: “Querem é vender as roupas do meu filho no dumba-nengue (mercado de rua) e mafiar-me que estão enterradas”. (Ibide, Ibidem, p. 26) Por outro lado, revela o estado de penúria a que se encontravam os moçambicanos, em miséria absoluta:

“Há anos que entretanto não se realizavam aquelas cerimônias de enterrar os pertences dos mortos. Roupa dos falecidos serve para os vivos. Numa altura destas, prenhe de crises, como desperdiçar os farrapos dos outros, mesmo depois de passarem para o outro lado da fronteira, lá onde habitam os sem-vida?” (Ibide, Ibidem, p. 26)

Este acontecimento demonstra o dilaceramento das tradições espirituais, a descrença nos rituais funerários dos antepassados, a cultura esgarçada. Nei Lopes, em Kitábu, comenta que a morte é a continuidade da vida, que se desprende do corpo físico e parte ao encontro dos que o precederam, em um outro nível de existência. Por isso, é fundamental o respeito aos antepassados e o cumprimento dos rituais e obrigações para com eles.

Tais costumes tentam sobreviver nos bairros periféricos de Maputo, os bairros de caniço, onde se passa a história. Bairros que tinham como característica o convívio entre as diversas raças (negros, árabes, portugueses, indianos) que viviam em Moçambique e formaram a cultura miscigenada do país.

A narrativa privilegia as manifestações da religiosidade africana deformada pelos séculos de colonialismo e depois perseguida pelos representantes da revolução, de orientação comunista, que diziam que a “revolução era pagã”. Porém, a hipocrisia é uma característica dos que estão no poder e tal fato não era praticado pelos dirigentes, que, às escondidas, visitavam os curandeiros:

“Dizem até, numa altura em que os grandes não punham os pés nas igrejas nem sequer admitiam cerimónias para lembrar os antepassados, tudo isso porque a revolução era pagã, alguns, muitos destes alguns, dizem as falas populares, saíam dos seus Volvos e dirigiam-se, à socapa, ao velho Aeroporto, famoso por socorrer as mais incríveis inquietações.” (Ibide, Ibidem, p. 29)

Contrapondo-se à asfixia das origens locais, o narrador mostra a relação com o mundo dos mortos, o que os envolve como os xicuembos (espíritos malignos, constantes na pintura de Malangatana Valente), xipócùes (almas de outro mundo) e os nyangas (curandeiros). Sendo assim, conhecemos doenças como a nyocana, a doença da lua, sofrida por Marimbique, o ritual para sua cura e como o ritual se adaptou à geografia dos subúrbios:

“Quando há luar, o atingido entra nas convulsões, sofre espasmos. (...) Mata-se um animal representativo – cabrito, por exemplo – cozinha-se carril de amendoim de galinha, mais xima, alguns assimilados fazem arroz, junta-se a família. Para além disso, existem as bebidas tradições, como o uputso. Vinho também serve, mas tem que ser branco. (...) Ajoelha-se a um canto da palhota, se for no subúrbio, no quarto da flat para aqueles que transitaram e estão na cidade, e fala com os velhos de antigamente. (...) A cerimônia termina sempre com alegria entre os convivas. Assim, os que estão deste lado da Terra podem continuar sossegados, os espíritos haverão de protegê-los.” (Ibide, Ibidem, pp. 115-116)

Como a mãe de Marimbique acreditava nos valores da revolução, não dava importância para o que sentenciavam os nyangas (curandeiros) e Marimbique não cumpriu as obrigações necessárias. Somente com a velhice acompanhada do desespero em não reencontrar o filho e a morte que se aproxima, é que ela retornará às crenças locais:

“O filho sofrerá a vida inteira desta doença e dos maus espíritos que lhe ensombraram os caminhos. Muitos anos depois, a velha será uma devota das consultas aos curandeiros. Mas o filho terá já desaparecido, as suas demandas pouco ajudarão a saber do seu destino.” (Ibide, Ibidem, pp. 116-117)

Embalados pelo clima festivo e de vitória absoluta da independência, alguns excessos foram cometidos pelos novos governantes e seus simpatizantes. Seguindo a cartilha dos partidos comunistas europeus, houve um patrulhamento intenso sobre os costumes tradicionais moçambicanos e tudo o que não seguisse as diretrizes européias era considerado contra-revolucionário, passível de pesadas punições. Havia, por exemplo, a “Operação Produção”, que mandava para fora da cidade os desajustados sociais, como os bêbados:

“Durante a ‘Operação Produção’ desapareceram, passaram a beber clandestinamente num improvisado bar de subúrbio, até passar a fúria revolucionária que varria os famosos improdutivos dos centros para o Niassa.” (Ibide, Ibidem, p. 113)

A burocracia estatal mostra sua (in)eficiência no controle da vida das pessoas, na quantidade enorme de documentos exigidos aos transeuntes pelos despreparados soldados governamentais, procedimento que ficou conhecido como “Operação Tira-Camisa”, que também servia para prender ou forçar ao alistamento nas tropas:

“– Documentos?
– BI, cartão de residente e cartão de recenseamento!
(...)
– Os que estão indocumentados para aquele canto. Fiquem ali em fila, tirem as camisas.
Era a mais do que conhecida ‘Operação Tira-Camisa’. Marimbique ouvira falar apenas deste tipo de rusga. Os militares ficavam à porta dos cinemas e de outros lugares de concentração dos jovens e exigiam que estes exibissem os papéis. Pediam de preferência documentos impraticáveis. Havia aqueles que, no delírio de sua ignorância, até exigiam que os incautos transeuntes sacassem dos bolsos certidões de óbito. Quem não os tivesse ia preso. Era levado para os centros de concentração ou eram recrutados compulsivamente para a tropa. A guerra apertava. Precisava-se, com urgência, de carne para canhão.”
(Ibide, Ibidem, p. 50)

Com o intuito de equiparar tudo, de criar uma sociedade sem classes como nas teorias socialistas, o governo revolucionário toma medidas radicais. Surge o cartão de abastecimento e a lei de igualdade salarial:

“Quatro barra oitenta foi uma das leis mais conhecidas no tempo da revolução, com ela se estipulava a igualdade de salários nas mesmas categorias profissionais. (...) Para além dos salários que provinham dessa lei, havia os cartões de abastecimento que o GOAM (Gabinete de Organização do Abastecimento de Maputo), distribuía, sem os quais não se podia adquirir comida nas lojas.” (Ibide, Ibidem, p. 84)

A incompetência estatal também serve para mascarar a corrupção, alimentar o tráfico de influências e favorecer os quadros políticos. Infelizmente, situações típicas das elites dos países periféricos. O romance denuncia o deplorável caráter de alguns representantes das lideranças revolucionárias e mais uma vez o despreparo para o comando:

“Muitas das padarias da cidade não faziam pão. Tinham entrado em crise. Ter pão era privilégio dos chefes, os famigerados Estruturas. Aqueles que vestiam balalaicas do poder e acenavam dos seus LADA. Os LADA eram carros importados de um dos países socialistas que apoiavam a revolução. Os populares não sabiam a origem exacta dos carros protocolares, mas eximiam-se no escârneo, LADA significava, na fala de rua: leva atrás dirigente analfabeto.” (Ibide, Ibidem, p. 13)

A luta pela independência serviu para unificar Moçambique e as várias etnias que compõem o país. Porém, a harmonia entre elas era instável, as lideranças dividiam-se, enquanto os combatentes, como Marimbique, desconheciam as outras regiões e povos. O bairro onde vivia, a Munhuana, havia o convívio entre povos de várias raças, o que pode ser confirmado nos depoimentos do poeta José Craveirinha ao comentar sobre a Mafalala.

“Em pouco tempo ficou a perceber que era do Sul, havia os do Norte. Também soube que era ronga e havia os macuas. A revolução não resolvera o grande dilema de um país embrulhado em várias nações. Não sabia Marimbique o que significava a palavra etnia. Mais tarde aprendeu na dureza do quotidiano que os homens se dividiam por origens geográficas, por raças, por línguas ou etnias.
O seu mundo era a Munhuana, ali eram, todos, meninos. Pretos, chineses, mulatos, fosse o que fossem. Eram todos da mesma raça. (...)”
(Ibide, Ibidem, p. 41)

Tal situação era geradora de intensos conflitos na mente de Marimbique, que não compreendia as desavenças entre os vivos, a matança desenfreada da guerra, o desarranjo do mundo:

“Hoje, quando olha o país mergulhado na confusão de cores, lembra-se do daltonismo que então guiava os moçambicanos. (...) De onde são estes corpos que transportamos? Que língua falarão lá no lugar para onde vão? A que etnia pertencem? Serão eles ainda muito diferentes na sua condição única de mortos?” (Ibide, Ibidem, pp. 41-42)

O convívio com a guerra faz com que a anestesia se apodere dos sentimentos das pessoas. Amor, sonho e dignidade são desalojados pela inércia e desinteresse pelo sofrimento do próximo. Os mutilados não causam espanto, nem revolta:

“Apareceram depois os mutilados. Os transeuntes olhavam-nos mas não se importavam. Era apenas mais uma palavra que a guerra nos trouxera para o vocabulário: mutilado. (...) Pessoas que viram seus membros estilhaçarem-se ao vento. Gente que perdeu sonhos e dignidade. Agora vendem maços de cigarros em bancas improvisadas nos passeios.” (Ibide, Ibidem, p. 59)

Com a aproximação da independência, os portugueses colonizadores, que segundo Albert Memmi se acostumaram à vida e às benesses oferecidas na colônia jamais imaginaram que essa realidade um dia findaria e que precisariam abandonar a colônia e seriam obrigados a retornar à metrópole. Essas pessoas viviam às custas do sistema colonial e tiveram que se retirar em massa, deixando os apartamentos nos prédios da cidade desocupados. Estes, passaram a sofrer com a falta de manutenção e foram ocupados pelas pessoas que viam do interior, que se adaptavam, a sua maneira, à nova vida, situação parecida com a da novela angolana de Manuel Rui, Quem me dera ser onda:

“Os prédios ameaçavam ruir de podre. (...) Por todos os lados havia furos de água suja. A rede de esgotos acolhia ratazanas. Os tubos das canalizações enferrujavam secos. Bebia-se água insalubre, que subia a baldes nas escadas porcas e escorregadias (...) Os inquilinos acendiam fogões a carvão nos andares, punham a lente em chama nas flats, as paredes escureciam ocultando o branco que haviam tido antes. Os homens, nas suas horas de lazer, plantavam pequenas hortas nas banheiras. Eles ignoravam a utilidade dos novos objectos que se atulhavam nas casas de banho da revolução. (...) As explêndidas moradias tinham sido deixadas ao abandono pelos antigos proprietários. Estes haviam sido apanhados desprevenidos na encruzilhada da História, eles que se julgavam eternos, na sua modorra africana (...)”(Ibide, Ibidem, p. 71)

As ruínas da cidade são as ruínas psicológicas dos moçambicanos, fraturadas pela presença constante da morte e dos mutilados. Pessoas deslocadas dos seus locais de origem sonambulam pelas estradas com o risco real de sofrer uma emboscada, além da fome, que passa a ser uma fiel companheira do cotidiano. Há, até uma denúncia feita em relação a isto, pois os postos de abastecimento tinham papéis higiênicos e outros artigos em grande quantidade, enquanto a comida quase não aparecia:

“As lojas do Povo o que tinham de mais era o batom e papel higiênico. Não que as moças desgostassem do batom que vinha do Leste da Europa, não que os nossos hábitos fossem contrários ao uso de papel higiênico, preferindo a areia, coisa que se fazia agachado, depois de se defecar no mato, também tínhamos ânus urbanizados, o que se passa é que a comida era pouca e a necessidade terrena de nos desfazermos dos sólidos desnecessários ao organismo também. Daí o excesso na provisão do papel higiênico.” (Ibide, Ibidem, pp. 143-144)

Em um estado de pobreza onipresente, cada cidadão lida com a terrível época a sua maneira. A personagem Jamaica é um ex-combatente que se tornou mutilado após pisar em uma mina. Porém, era “mutilado de uma guerra que ele recusava existir, Jamaica, enfim, vivia das lembranças”. (Ibide, Ibidem, p. 61) Recordava-se sim, dos tempos em que era jogador de futebol e das meninas que namorava. A evasão servia para encobrir a realidade: “Mutilado eu? Vão todos para aquele sítio. Dizem que eu não tenho perna? Quem não tem perna é este país que está cheio de malucos. Eu sinto a minha perna, esta muleta é tudo estilo”. (Ibide, Ibidem, p. 62) Já a personagem Bragança, amigo de Jamaica, fez da incomunicabilidade a sua forma de reação contra as agruras da guerra: “Bragança, esse, não falava. Voz dele extinguiu-se há muitos anos”. (Ibide, Ibidem, p. 63)

O desajuste perpetrado pela guerra, desloca os homens para longe da racionalidade. A realidade aniquilada pelas minas apresenta um quadro surreal que beira a loucura:

“Mano, como não podemos estar com o juízo fora de lugar? As búlgaras gostam dos pretos, os italianos filmam cães a fornicar nossas filhas. Como não ficar maluco perante esta sociedade que até nos traz os mortos de Maluana para serem passeados pela Avenida Eduardo Mondlane como se fosse dia de carnaval? Tudo isto não bate certo. Fazemos parte de um terrível carnaval de estúpidos!” (Ibide, Ibidem, p. 81)

A irracionalidade dos anos de guerra motiva a ironia ao grotesco dos acontecimentos. Rir-se da própria desgraça. O riso como fator crítico da ordem estabelecida, demonstrando, através do grotesco, as falhas da época:

“Não muito tempo depois, nos palcos da cidade se começou a zombar da própria desgraça, fazendo com que os desgraçados se rissem de si próprios. Não sei se moçambicanamente cultivamos a ironia na forma de nos retratarmos no quotidiano, mas verdade seja dita: o teatro que haveria de irromper, nos anos aflitos de guerra, nos tempos do cerco à cidade, quando se anunciavam todos os apocalipses, seria de grande motivação do riso e do escárneo.” (Ibide, Ibidem, p. 72)

A maneira como a guerra definha os sentimentos dos povos que são obrigados a conviver com cenas deprimentes e deploráveis, ultrapassa o grotesco. O horror das mortes corriqueiras, amendronta até aqueles que estão habituados a conviver com ela, como o coveiro Mandala:

“Afaguei muita morte. Mas, palavra de honra, tenho medo destes mortos. São caras de mulheres assustadas, de crianças que ainda gritam, de homens surpreendidos pelas baionetas, precocemente. Não são mortos vindos do sossego. Dizem que são as vítimas da guerra. De Maluana, de Taninga. Com estes mortos assim qualquer dia esta guerra não fará vítimas, ela própria será vítima dos mortos porque nenhuma guerra devia agüentar tanto.” (Ibide, Ibidem, p. 88)

A inconseqüência e fúria dos ataques dos soldados destroem as vidas das pessoas, que perdem seus bens materiais, seus parentes, suas identidades. Vários personagens representam o vazio, a ausência de um passado que foi dilacerado no decorrer do conflito. A perda da identidade é o que pode haver de mais doloroso, além da perda de contato com os familiares desaparecidos. Mandala é um personagem sem passado e sem nome, recebeu a alcunha daqueles que passaram a conviver com ele: “Dizer velho Mandala é uma espécie de redundância dado que o nome de Mandala ninguém conhecia e assim lhe chamavam por sua idade justificar tal alcunha”. (Ibide, Ibidem, p. 87)

O mesmo acontece com a velha mãe de Marimbique. Seu passado são especulações dos que com ela passaram os anos:

“Fala-se muito dela mas nada se sabe ao certo. Sua lenda intensifica-se na densidade da incerteza. Nem mesmo o elementar pormenor do nome. Como se chama? Ninguém lhe conhece o nome. Ela é conhecida, porém, pela alcunha, que lha deram por ser má, intratável, difícil, irascível – Xinguavilana.” (Ibide, Ibidem, pp. 22-23)

A tragédia da morte ronda todo o romance e é somente na morte que Marimbique e sua mãe, Xinguavilana, voltam a se encontrar, em dois cortejos distintos rumo as suas sepulturas. O rapaz acabou dominado pela loucura em um hospital, sua última morada. A mãe de Marimbique foi vencida pelo tempo quando perdeu a esperança de achá-lo:

“Outra vez eles cruzaram-se, agora nas campas, lado a lado. Definitivamente. Não havia como evitar que se encontrassem. O dia estava-lhes reservado a este encontro na morte, descerão à terra e residirão lá nos lugares onde acoitam os antepassados, ao mesmo tempo quase, e em talhões gémeos por assim dizer. (...)
A filha de Mambone e mãe de Marimbique não resistira ao desgosto do desaparecimento do filho. Quando perdeu a esperança de reencontrar, deixou-se levar para a terra dos antepassados. Afinal, os dois, mãe e filho, por fim encontravam-se e abraçavam-se para a eternidade.”
(Ibide, Ibidem, pp. 139-140)

A família destruída pela guerra continuará dilacerada com a presença do filho de Marimbique, que conheceu o pai e a avó no dia do enterro, e, assim, “ficou a saber a partir daquele dia quando, finalmente, lhe contaram a estória da sua família paterna”. (Ibide, Ibidem, p. 140)

Para finalizar, fico com as palavras do narrador, que melhor expressam o triste período da história recente de Moçambique, neste pungente romance de Nelson Saúte:

“Os anos oitenta foram anos dramáticos. Foi o tempo em que experimentámos a miséria mais abjecta em termos materiais. Onde os homens despojaram-se da sua humanidade e vestiram a bestialidade oculta na sua personalidade. Foram os anos da morte, da violência das armas que em humanas mãos serviram para destroçar os mais belos projectos igualmente humanos que havia entre nós e reduzir o homem moçambicano à condição de coisa nenhuma. (...) Os anos da falta de luz. (...) Os anos dos suicídios dos jovens, da morte estúpida e brutal dos jovens. Estes são os anos oitenta. Os anos da nossa desgraça individual e colectiva, mas os anos que resgatamos hoje e quase choramos ao lembrá-los porque em tudo em que eles representavam havia uma pureza que as minhas palavras não têm competência para nomear. E agora que os homens se vestem dos agasalhos da amnésia para atravessar as ruas, vale a pena recordá-los.” (Ibide, Ibidem, pp. 141-144)


BIBLIOGRAFIA:
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.

LOPES, Nei. Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-africanos. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2005.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

SAÚTE, Nelson. Os narradores da sobrevivência. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000.

SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. Paisagens, memórias e sonhos na poesia moçambicana contemporânea. In: A magia das letras africanas – ensaios escolhidos sobre as literaturas de Angola, Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE Graph Editora, 2003.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

II Fórum Internacional de Angolanistas

Política, Direito, Economia e Democracia na Reconstrução de Angola
7 a 9 de novembro de 2007
Universidade Estadual do Rio de Janeiro

http://www.angolanistas.org/Evento2007/index1.htm


O II Fórum Internacional de Angolanistas é uma realização da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Centro de Ciências Sociais, Programa de Estudos e Debates dos Povos Africanos e Afroamericanos, Laboratório de Pesquisas e Práticas de Ensino-LPPE, Programa de Pós-Graduação em História), e colaboração do Departamento de Literaturas Africanas da UFRJ, Departamento de História/História da África da UFF e da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto/Angola, com o apoio da Embaixada da República de Angola no Brasil e do Consulado Geral de Angola no Rio de Janeiro. Tem como objetivo estimular e divulgar a produção de idéias que visam a reconstrução, o progresso e o desenvolvimento sustentável de Angola, bem como o intercâmbio acadêmico-científico entre estudantes, cientistas, pesquisadores, acadêmicos e atores da sociedade civil e pública para debater questões do interesse desse rico e potencialmente influente país africano. Passando para a sua segunda, depois da bem-sucedida realizacão do I Fórum de Quadros Angolanos e Angolanistas no Brasil, promovido pela mesma Universidade, caracteriza-se como o primeiro esforço de lutar pela necessidade de convergência e colaboração dos angolanistas do Brasil, de Angola e do mundo inteiro com vistas a engajá-los na discussão de idéias e propostas que podem ajudar Angola a trilhar o rumo do desenvolvimento social, cultural e científico sustentável. É um projeto que busca afirmar-se como um Fórum Internacional de natureza acadêmica e científica para a discussão, produção, divulgação e monitoramente de idéias propositivas que auxiliem Angola a construir planejadamente uma sociedade socialmente mais justa, politicamente harmoniosa e economicamente estável.
Além dos conferencistas e palestrantes convidados do Brasil, Angola e outros países, poderão submeter trabalhos para palestras à apreciação da Comissão Científica professores, estudantes de graduação e pós-graduação e investigadores envolvidos em trabalho de pesquisa (concluída ou em andamento) sobre os diversos temas do interesse de Angola e da academia (veja aqui como inscrever trabalhos). Alunos de graduação, bolsistas, concluintes e interessados em geral, poderão submeter seus trabalhos para apresentação dentro da programação "Comunicações.

ONDJAKI - O homem mais magro de Luanda.

A seguir um conto extraído do recente livro Os da minha rua, publicado pela editora Língua Geral, do escritor angolano Ondjaki, representante da novíssima geração do seu país. Nascido em Luanda, em 1977, é romancista, contista e às vezes poeta. É membro da União dos Escritores Angolanos. Recentemente co-dirigiu o documentário Oxalá crescam pitangas - histórias de Luanda (2006), e passou por aqui no Festival do Rio de Cinema 2007.
O homem mais magro de Luanda
– Mas caíste das escadas ou foi assim acidente de carro?
– Não, pá. Foi o Chico que me deu um apertão.
Palavras do Vaz, dias depois do apertão.
A casa do tio Chico tinha talvez a cerveja mais deliciosa de Luanda. Os mais-velhos é que falavam isso, antes e depois de beberem umas quantas. Eu e a tia Rosa tínhamos mais a ocupação de abrir a porta e ir buscar essa tal deliciosa cerveja.

Não me lembro bem se os toques eram diferentes ou não, mas o tio Chico sabia quem estava no portão pelo modo como a campainha tocava. As pessoas iam chegando.

– Ó Rosa, traz aí uns torresmos e o jindungo malandro.

Dois toques rápidos “é o Osório, vai abrir, Dalinho”, um toque suave tipo tímido “é o Mogofores, e vem com sede”, toque longo e palmas “é o Lima, ó Rosa dá aí um jeito”, a mesa enchia-se de copos de cerveja, aperitivos e sobras, quitetas, kitaba, camarões, chouriço, a televisão sempre ligada e pessoas de todas as cores que vinham beber dos barris de cerveja do tio Chico.

O tio Chico gostava de fazer obras no quintal, acho eu. Ao lado da enorme gaiola de rolas ele construiu dois quartos. Pensei que era quarto de gente, afinal era para guardar carne, peixe e o barril de cerveja que ficava lá dentro. Um quarto era tipo geleira, o outro era arca de congelar tudo.

Naquele tempo o tio Chico tinha um contacto para ir buscar barris de cerveja e podia haver maka se não houvesse aquela botija fininha de dar pressão aos finos. Ficava tudo dentro do quartinho-geleira. Cá fora havia a torneira da cerveja e um banquinho para eu chegar lá e poder encher os copos. Eu então gostava bué dessa minha missão de finos.

No quintal do tio Chico eu já não contava os finos, era perda de tempo. Depois do fino 77 as pessoas riam muito e já não havia quase torresmos no pires. Os olhos brilhavam mais e eu até já podia contar anedotas sem graça nenhuma que todos riam mesmo só à toa.

A campainha tocou. Só que o tio Chico não disse quem era. Olhei logo na direcção do portão, para saber se ia já a correr abrir. O Lima pousou o copo. O Mogofores parou de rir, ainda por cima arrotou sem pedir desculpa. O Osório puxou as calças para cima como sempre gostava de fazer mesmo que o cinto já estivesse perto do sovaco. A tia Rosa também esperou. A campainha tocou mais. Eu já só mexia os olhos.

– Vai lá ver – o tio Chico falou.

– O miúdo não vai sozinho – a tia Rosa agarrou-me no braço.

Os outros ficaram com cara de não-sei-quê. Era sempre assim, se houvesse uma pequena maka entre a tia Rosa e o tio Chico, todos paravam de beber. A tia Rosa levantou-se, fomos juntos. Era o Vaz.

O Vaz era um senhor muito alto, também camba do tio Chico, talvez o homem mais magro de Luanda.

– Boa noite, dona Rosa, o senhor Chico ta? – a tia abriu o portão para ele entrar.

No quintal já havia barulho de novo. Todos riram quando o Vaz entrou nessa maneira desajeitada de cumprimentar as pessoas.

– Ó meu sacana, então tu não sabes tocar a campainha como deve ser?

O Vaz não disse nada, cumprimentou todos e no fim aproximou-se com receio do tio Chico.

– Não me digas que tás outra vez com medo de me apertar a mão?

Não sei, eu era só uma crianças dessas a olhar os mais-velhos, mas muita gente não gostava assim muito de cumprimentar o tio Chico.

– Anda cá, meu sacana, andas a tocar a minha campainha com toques secretos, tu quase que entras pela racha do muro.

O Vaz, com medo, chegou perto do tio Chico. Quando foi abraçado, o tio Chico fez questão de lhe dar um apertozito. As costas do Vaz fizeram um ruído tipo estalido de porta enferrujada.

– Ó Dalinho, traz aí um fino bem tirado pra este sacana do Vaz.

Atravessei o quintal com o copo de vidro na mão, na direcção da torneira da cerveja pendurada na parede. Na cozinha aberta, cá fora, a tia Rosa, com o avental dela azul e bonito, com chinelas abertas e antigas, fritava mais torresmos e controlava o peixe grosso no forno. Durante muitos anos, para mim o mundo teve o cheiro daquele quintal maluco: as cervejas, as comidas e as mãos da tia Rosa a emprestrarem cheiros de cozinha aos meus cabelos despenteados.

De longe olhei o Vaz fazer caretas de dor. Tentava disfarçar, mas desconseguiu. Trouxe-lhe o fino bem gelado e ele bebeu tudo assim num gesto de matar a dor.

- Tavas cheio de sede, meu sacana.

Depois do jantar, as filhas do tio Chico já tinham ido dormir e a telenovela estava quase a acabar. Acordei com a voz do Sinhôzinho Malta a dizer “tou certo ou tou errado...?”, e o telefone tocou. O tio Chico atendeu. Primeiro ficou preocupado, depois riu devagarinho.

– Tá bem, tá bem, espero que corra tudo bem com esse sacana.

Eu e a tia Rosa também queríamos saber do caso. O tio andou devagar, de propósito, sentou-se.

– Ó Rosa, vai-me lá buscar um fino, filha – o tio Chico fechou as janelas da sala, recebeu o copo e bebeu de penalty. – À saúde do Vaz – ainda disse, enquanto ia para o quarto.

A tia Rosa apagou a luz da sala e fomos juntos para o quarto.

– O sacana do Vaz tá no hospital, tem duas costelas partidas.

Eu ainda queria perguntar se isso de costelas era o quê, mas já era tarde.

– Amanhã vamos lá ver o gajo, e tu podes mexer na manivela da cama, Dalinho.

O tio apagou o candeeiro, enquanto a tia Rosa fez-me uma festinha na bochecha e endireitou o lençol, como fazia sempre há tantos anos, para os mosquitos não me ferrarem nos braços e não me atrapalharem nos meus sonhos de falar durante a noite.


ONDJAKI. O homem mais magro de Luanda. In: Os da minha rua. Rio de Janeiro: Editora Língua Geral, 2007. pp. 53-57.

sábado, 3 de novembro de 2007

Luandino Vieira: A cidade e a infância


A Companhia das Letras lança o primeiro livro de contos de Luandino Vieira:

A CIDADE E A INFÂNCIA
José Luandino Vieira

Os contos de A cidade e a infância anunciam algumas das características que se tornariam marcas da escrita de José Luandino Vieira: a paisagem urbana e o contexto de pobreza e marginalidade de Luanda; a oralidade pronunciada da narrativa; o convívio e a tensão entre negros, brancos e mulatos; a crítica da modernização excludente. Engajado e radicalmente inovador, Luandino ajudou a consolidar a literatura angolana no período de luta contra a colonização portuguesa, criando uma dicção literária única (sua prosa madura é comparada à de Guimarães Rosa). O livro traz dez narrativas breves, inspiradas na infância do próprio autor, vivida nos bairros pobres de Luanda, em companhia de meninos negros e mestiços. O volume inclui algumas das "estórias" (como o próprio Luandino as chama) mais conhecidas do autor: "Companheiros"; "O nascer do sol"; "A cidade e a infância" e "A fronteira de asfalto". Este último conto narra a história de duas crianças, um menino negro e uma garota branca, que são proibidos de se encontrar. Apartados por iniciativa da família dela, eles também são separados pela "fronteira de asfalto" que divide os bairros ricos e os musseques de Luanda. A cidade e a infância traz o texto "A libertação do espaço agredido através da linguagem", prefácio de Manuel Ferreira à segunda edição portuguesa (1977) e o prefácio de Costa Andrade à primeira edição (1960).


Informações retiradas de http://www.companhiadasletras.com.br/

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Língua Geral: lançamentos e noite de autógrafos

A Editora Língua Geral fará na quarta-feira, 07/11/2007, às 19h30, uma noite de autógrafos na Livraria Travessa (Rua Visconde de Pirajá 572, Ipanema) com os escritores e os seguintes livros:
Ondjaki – Os da minha rua
Patrícia Reis – Morder-te o coração
Francisco José Viegas – À luz do Índico
Nelson Saúte – Rio dos Bons Sinais

Nelson Saúte – Moçambique e Ondjaki – Angola, participarão do III Encontro de Professores de Literaturas Africanas no dia 21/11, às 16h, na Fundação Biblioteca Nacional, ao lado dos escritores Jacques dos Santos – Angola e Fragata de Moraes – Angola.

As informações a seguir são do sítio da Livraria Travessa: http://www.travessa.com.br/wpgEventos.aspx?pcd=10002


OS DA MINHA RUA
Ondjaki
Editora: Língua Geral

RESENHA

Músicas, lugares e cheiros estimulam as lembranças do escritor angolano Ondjaki, no livro Os da minha rua, publicado pela editora Língua Geral. Neste livro Ondjaki passeia pela infância, vivida em Luanda nas décadas de 1980 e 1990. Os limites entre biografia e ficção são continuamente desafiados: basta observar o tom intimista a mesclar-se continuamente a uma perspectiva histórica. Dessa forma Ondjaki amplia os horizontes de sua literatura, conduzindo os leitores a cenas de caráter intimista que levam ao registro de uma época em Angola. Os da minha rua revela grande mobilidade não só pelo olhar intimista que se expande ao registro histórico: os 22 textos desta obra podem ser lidos como unidades autônomas, que valem por si mesmas (como se fossem contos), mas também podem ser lidos feito capítulos de um romance. Trata-se portanto de uma obra muito flexível, de intenso hibridismo, que se vale de outro tom, muito próximo ao da crônica. Este surge por meio do registro sobre o cotidiano, que vem a ser uma das marcas incontestáveis desse gênero. Com um discurso muito afeita à oralidade, o narrador lembra de amigos, família, festas na casa dos tios, paixões, professores cubanos, a parada de 1.º de Maio, a piscina de Coca-Cola e a novela brasileira Roque Santeiro. Com essas memórias entre o ficcional e o biográfico, Ondjaki nos leva à reflexão sobre nossas próprias particularidades, de nosso passado e de nossas lembranças sobre um período de descobertas e brincadeiras. “A vida às vezes é como um jogo brincado na rua: estamos no último minuto de uma brincadeira bem quente e não sabemos que a qualquer momento pode chegar um familiar a avisar que a brincadeira já acabou e está na hora de jantar. A vida afinal acontece muito de repente (...).”

ISBN: 9788560160235
ENCADERNAÇÃO: Brochura Formato: 13 x 18 168 págs.
ANO DA OBRA/COPYRIGHT: 2007
COLEÇÃO: PONTA-DE-LANÇA
ANO EDIÇÃO: 2007


MORDER-TE O CORAÇÃO
Patricia Reis
Editora: Língua Geral

RESENHA

Em "Morder-te o coração" há muitas tentativas para compreender o amor, o desejo, a fuga, o medo; tenta-se compreender sobretudo a procura do sexo com mais-valia de calor humano que nos protege e nos defende da solidão. Encontros e desencontros de sentimentos, de vontades e de decisões mapeiam o novo romance de Patrícia Reis, escritora portuguesa que tem mais de um romance lançado pela editora Língua Geral e que é, em Portugal, um dos maiores sucessos de público e crítica neste ano. "Morder-te o coração" traz as lembranças de um homem por um amor de verão; seus sonhos e desejos com uma mulher misteriosa, calada e que ele acreditou amar. O romance revela a desilusão deste homem após a fuga do seu amor, a busca por ela em todos os cantos do mundo (de uma ilha portuguesa a Veneza) e até mesmo em outra mulher, na nova vida que tenta levar na cidade fria de Estocolmo, onde seu único desejo é ter alguém para abraçar todos os dias. Através desta segunda personagem ele se envolve num triângulo amoroso, uma fuga da solidão, o sexo como instrumento de sobrevivência. Após ver o rosto da mulher amada na internet, ele foge e deixa para trás o abraço de todo dia, a amante, em busca do seu amor, na tentativa de refazer a vida, de ir atrás daquele que acreditava ser seu destino. "O amor visto por um homem em o poder e a dor das coisas maiores", aforma a autora Patrícia Reis. Histórias de sexo, amantes que se entrelaçam com lembranças da infância, da mulher misteriosa que recorda a perda da mãe, do alcoolismo do pai, as mentiras, a paixão epla fotografia e a tentativa de suicídio. Patrícia Reis apresenta uma narrativa que alterna histórias de cada personagem, histórias divididas que dialogam entre si.

ISBN: 9788560160129
ENCADERNAÇÃO: Brochura Formato: 13 x 18 162 págs.
ANO DA OBRA/COPYRIGHT: 2007
COLEÇÃO: PONTA-DE-LANÇA
ANO EDIÇÃO: 2007

À LUZ DO INDICO
Francisco Jose Viegas
Editora: Língua Geral

RESENHA

As lembranças da antiga cidade colonial de Lourenço Marques (atual Maputo, capital de Moçambique) num período anterior ao processo de independência, a busca de Miguel por Maria de Lurdes e a inquietude de um assassinato logo nas primeiras páginas caracterizam A luz do Índico, novo romance do escritor português Francisco José Viegas. Vinte e sete anos depois de ter saído de Moçambique, em 1973, Miguel retorna à cidade de Maputo, onde teve seu primeiro amor, Maria de Lurdes. Este retorno de Miguel à cidade de Maputo traz consigo a busca por esta mulher, que ele não vê há cerca de dois anos. Conseqüentemente encontra Pemba, Nampula, o lago Niassa, entre outras localidades de Moçambique. Revela-se então um país totalmente modificado e revirado pela guerra. Um território diferente do que a memória apresentava para Miguel. A narrativa romântica da busca por Maria de Lurdes é entremeada pelo estilo policial que se inicia nas primeiras páginas, com o assassinato de Gustavo Madane, ex-homem forte do regime marxista, que aparece morto nos arredores de Maputo. Durante a viagem, Miguel reencontra Domingos Assor, companheiro de infância e agora investigador policial, responsável pela investigação da morte de Madane. Domingos lhe serve como interlocutor na sua busca por Maria de Lurdes e a partir desse diálogo surge a imagem de uma intensa solidão, resultado de um país com um passado glorioso e um presente devastado.

ISBN: 9788560160204
ENCADERNAÇÃO: Brochura Formato: 13 x 18 273 págs.
ANO DA OBRA/COPYRIGHT: 2007
COLEÇÃO: PONTA-DE-LANÇA
ANO EDIÇÃO: 2007

RIO DOS BONS SINAIS
Nelson Saúte
Editora: Língua Geral

RESENHA

Depois de O homem que não podia olhar para trás, lançado pela Editora Língua Geral e que faz parte da coleção Mama África, voltada para o público infato-juvenil, o moçambicano Nelson Saúte apresenta agora uma literatura um tanto singular. Em Rio dos bons sinais, seu novo livro de contos, a morte permeia todas as histórias, e a realidade e a ficção caminham lado a lado. Eufrigino dos Ídolos, o homem que ia a todos os funerais com seu guarda-chuva amarelo, o enterro da bicicleta do popular deputado que tinha nove filhos, o ministro de Deus, a aldeia dos homens sem sombra, a vovó Mafaduco e a Menina dos Prazos são alguns dos curiosos, batalhadores e cativantes personagens que compõem os enterros, funerais e o luto que servem como cenário para a obra. “Este é um livro de ausências. Sem grandes gestos, grandes batalhas, grandes epopéias, sem grandiloqüências ou arroubos filosóficos. As grandes aventuras estão no quintal da nossa casa, raramente nos horizontes exóticos e são os nossos olhos gulosos buscando o infinito que nos levam para o vazio dos gestos históricos”, afirma o também moçambicano Ruy Guerra, na orelha do livro. Em Rio dos bons sinais, que integra a coleção Ponta-de-Lança, Nelson Saúte apresenta a relação com os mais velhos, a morte sob diversos ângulos, o que também revela as particularidades da cultura africana. No cenário da morte e do luto, Nelson revê os conceitos, a pobreza, o amor, a amizade, recorda a infância e mostra que a morte é um fato da vida e que pode nos ajudar a compreender o que somos.


ISBN: 9788560160198
ENCADERNAÇÃO: Brochura Formato: 13 x 18 140 págs.
ANO DA OBRA/COPYRIGHT: 2007
COLEÇÃO: PONTA-DE-LANÇA
ANO EDIÇÃO: 2007