terça-feira, 25 de setembro de 2007

Caio Fernando Abreu - um conto

Aproveitando o lançamento nos cinemas de Onde andará Dulce Veiga?, filme de Guilherme de Almeida Prado, resolvi colocar um conto do Caio Fernando Abreu, escritor que conseguiu encarnar toda uma época nebulosa da história do país. Caio viveu em um período de céu acinzentado, gritos silenciosos e mentes inertes. Anos de uma juventude acuada, perdida em busca das cores, da alegria, de ideal, de ar para respirar. Escrevia como poucos, lúcido, conciso, emotivo, atemporal.
O dia em que Urano entrou em Escorpião (Velha história colorida) *
Para Zé e Lygia Sávio Teixeira e para Lucrécia (Lucas ou César Esposito)
*do livro de contos Morangos Mofados.


Estavam todos mais ou menos em paz quando o rapaz de blusa vermelha entrou agitado e disse que Urano estava entrando em Escorpião. Os outros três interromperam o que estavam fazendo e ficaram olhando para ele sem dizer nada. Talvez não tivessem entendido direito, ou não quisessem entender. Ou não estivessem dispostos a interromper a leitura, sair da janela nem parar de comer a perna de galinha para prestar atenção em qualquer outra coisa, principalmente se essa coisa fosse Urano entrando em Escorpião, Júpiter saindo de Aquário ou a Lua fora de curso.

Era sábado à noite, quase verão, pela cidade havia tantos shows e peças teatrais e bares repletos e festas e pré-estréias em sessões da meia-noite e gente se encontrando e motos correndo e tão difícil renunciar a tudo isso para permanecer no apartamento lendo, espiando pela janela a alegria alheia ou tentando descobrir alguma lasca de carne nas sobras frias da galinha de meio-dia. Uma vez renunciado ao sábado, os três ali ouvindo um velho Pink Floyd baixinho para que, como da outra vez, os vizinhos não reclamassem e viessem a polícia e o síndico ameaçando aos berros acabar com aquele antro (eles não gostavam da expressão, mas era assim mesmo que os vizinhos, o síndico e a polícia gritavam, jogando livros de segunda mão e almofadas indianas para todos os lados, como se esperassem encontrar alguma coisa proibida) – renunciando pois ao sábado, e tacitamente estabelecida a paz com o baixo volume do som e a quase nenhuma curiosidade em relação uns aos outros, já que se conheciam há muito tempo, eles não queriam ser sacudidos no seu sossego sábia e modestamente conquistado, desde que a noite anterior revelara carteiras e bolsos vazios. Então olharam vagamente para o rapaz de camisa vermelha parado no meio da sala. E não disseram nada.

Aquele que tinha saído da janela fez assim como se estivesse prestando muita atenção na música, e falou que gostava demais daquele trechinho com órgão e violinos, que parecia uma cavalgada medieval. O rapaz de camisa vermelha percebeu que ele estava tentando mudar de assunto e perguntou se por acaso ele já tinha visto alguma vez na vida alguma cavalgada medieval. Ele disse que não, mas que com o órgão e todos aqueles violinos ao fundo ficava imaginando um guerreiro de armadura montado num cavalo branco, correndo contra o vento, assim tipo Távola Redonda, a silhueta de um castelo no alto da colina ao fundo – e o guerreiro era medieval, acentuou, disso tinha certeza. Ia continuar descrevendo a cena, pensou em acrescentar pinheiros, um crepúsculo, talvez um quarto crescente mourisco, quem sabe um lago até, quando a moça com o livro nas mãos tornou a baixar os óculos que erguera para a testa no momento em que o rapaz de camisa vermelha entrou, e leu um trecho assim:

Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco seria uma outra forma de loucura. Necessariamente porque o dualismo existencial torna sua situação impossível, um dilema torturante. Louco porque tudo o que o homem faz em seu mundo simbólico é procurar negar e superar sua sorte grotesca. Literalmente entrega-se a um esquecimento cego através de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da realidade de sua condição que são formas de loucura - loucura assumida, loucura compartilhada, loucura disfarçada e dignificada, mas de qualquer maneira loucura.
Ernest Becker, A negação da morte

Quando ela parou de ler e olhou radiante para os outros, o que tinha saído da janela voltara para a janela, o rapaz de camisa vermelha continuava parado e meio ofegante no meio da sala enquanto o outro olhava para o osso descarnado da perna de galinha. Disse então que não gostava muito de perna, preferia pescoço, e isso era engraçado porque passara por três fases distintas: na infância, só gostava de perna, na casa dele aconteciam brigas medonhas porque eram quatro irmãos e todos gostavam de perna, menos a Valéria, que tinha nojo de galinha; depois, na adolescência, preferia o peito, passara uns cinco ou seis anos comendo só peito e agora adorava pescoço. Os outros pareceram um tanto escandalizados, e ele explicou que o pescoço tinha delícias ocultas, assim mesmo, bem devagar, de-lí-ci-as-o-cul-tas, e nesse momento o disco acabou e as palavras ficaram ressoando meio libidinosas no ar enquanto ele olhava para o osso seco.

O rapaz de camisa vermelha aproveitou o silêncio para gritar bem alto que Urano estava entrando em Escorpião. Os outros pareceram perturbados, menos com a informação e mais com o barulho, e pediram psiu, para ele falar baixo, se não lembrava do que tinha acontecido a última vez. Ele disse que a última vez não interessava, que agora Urano estava entrando em Escorpião, ho-je, falou lentamente, olhos brilhando. Ele estava lá há uns cinco anos, acrescentou, e os outros perguntaram ao mesmo tempo ele-quem-estava-onde? Urano o rapaz de camisa vermelha explicou, na minha Casa oito, a da Morte, vocês não sabem que eu podia morrer? e pareceria aliviado, não fosse toda aquela agitação. Os outros entreolharam-se e a moça com o livro nas mãos começou a contar uma história muito comprida e meio confusa sobre um garoto esquizofrênico que tinha começado bem assim, ela disse, a curtir coisas como alquimia, astrologia, quiromancia, numerologia, que tinha lido não sabia onde (ela lia muito, e quando contava uma história nunca sabia ao certo onde a teria lido, às vezes não sabia sequer se a tinha vivido e não lido). Acabou no Pinel, contou, é assim que começam muitos processos esquizóides. Olhou bem para ele ao dizer processos esquizóides, os outros dois pareceram muito impressionados e tudo, não se sabia bem se porque respeitavam a moça e a consideravam superculta ou apenas porque queriam atemorizar o rapaz de camisa vermelha. De qualquer forma, ficou um silêncio cheio de becos até que um dos outros se moveu da janela para virar o disco. E quando as bolhas de som começaram a estourar no meio da sala todos pareceram mais aliviados, quase contentes outra vez.

Foi então que o rapaz de camisa vermelha tirou da bolsa um livro que parecia encadernado por ele mesmo e perguntou se eles entendiam francês. Um dos rapazes jogou o osso de galinha no cinzeiro, como se quisesse dizer violentamente que não, olhando para o que estava na janela, e que já não estava mais na janela, mas sobre o tapete, remexendo nos discos. Parou de repente e olhou para a moça, que hesitou um pouco antes de dizer que entendia mais ou menos, e todos ficaram meio decepcionados. O rapaz de camisa vermelha falou baixinho que não tinha importância, e começou a ler um negócio assim:

Laposition de cet astre en secteur situe le lieu ou l’être dégage au maximum son indiuidualitéaans une voie de supersonnalisation, à lafaveur d’un développement d’énergie ou d’une croissance exagerée qui est moins une abondance de force de vie qu’une tension particulière d’enérgie. Ici, l’être tendà affirmer une volontélucide d’independence quipeutie conduire à une expression supérieure et originaledesapersonalité. Dans la dissonance, son exigence conduit à l’insensibilité, à la dureté, à l’excesszf à l’extremisme, au jusqu’au’boutisme, à l’aventure, aux bouleversements.
André Barbault, Astrologie

Parou de ler e olhou para os outros três devagar, um por um, mas só a moça sorriu, dizendo que não sabia o que era bouleversements. Um dos rapazes lembrou que boulevard era rua, e que portanto devia ser qualquer coisa que tinha a ver com rua, com andar muito na rua. Ficaram dando palpites, um deles começou a procurar um dicionário, o rapaz de blusa vermelha olhava de um para outro sem dizer nada. Depois que todos os livros foram remexidos e o dicionário não apareceu e o outro lado do disco também terminou, ele repetiu separando bem as sílabas e com uma pronúncia que os outros, sem dizer nada, acharam ótima:

L’être tendà affirmer une volonté lucide d’independence qui peut le conduire à une expression supérieure et originale de sapersonalité.

Então perguntou se os outros entendiam, eles disseram que sim, era parecidinho com português, lucide, por exemplo, e originale, era superfácil. Mas não pareciam entender. Aí os olhos dele ficaram muito brilhantes outra vez, parecia que ia começar a chorar quando de repente, sem que ninguém esperasse, deu um salto em direção à janela gritando que ia se jogar, que ninguém o compreendia, que nada valia mais a pena, que estava de saco cheio e não apostava um puto na merda de futuro.

O rapaz de camisa vermelha chegou a colocar uma das pernas sobre o peitoril, abrindo os braços, mas os outros dois o agarraram a tempo e o levaram para o quarto, perguntando muito suavemente o que era aquilo, repetindo que ele estava demais nervoso, e que estava tudo bem, tudo bem. A moça de óculos ficou segurando a mão dele e passando os dedos no seu cabelo enquanto ele chorava, um dos rapazes disse que ia até a cozinha fazer um chá de artemísia ou camomila, a moça falou que cidró é que era bom pra essas coisas, o outro falou que ia colocar aquele disco de música indiana que ele gostava tanto, embora todo mundo achasse chatíssimo, só que precisou botar bem alto para que pudessem ouvir do quarto. O chá veio logo, quente e bom, apareceu um baseado que eles ficaram fumando juntos, um de cada vez, e tudo foi ficando muito harmonioso e calmo até que alguém começou a bater na porta tão forte que pareciam pontapés, não batidas.

Era o síndico, pedindo aos berros para baixar o som e falando aquelas coisas desagradáveis de sempre. A moça de óculos disse que sentia muito, mas infelizmente naquela noite não podia baixar o volume do som, não era uma noite como as outras, era muito especial, sentia muito. Tirou os óculos e perguntou se o síndico não sabia que Urano estava entrando em Escorpião.

Lá no quarto, o rapaz de blusa vermelha ouviu e deu um sorriso largo antes de adormecer com os outros segurando nas suas mãos. Então sonhou que deslizava suavemente, como se usasse patins, sobre uma superfície dourada e luminosa. Não sabia ao certo se um dos anéis de Saturno ou uma das luas de Júpiter. Talvez Titã.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Alberto Fuguet: Baixo Astral


Escrever sobre o universo adolescente deve ser um enorme desafio para qualquer escritor, pelo menos imagino. Trata-se de um mundo repetitivo, chato e indeciso na maioria das vezes. Contudo, não é o que acontece no romance chileno “Baixo Astral” (Mala Onda), de Alberto Fuguet.

Fuguet ficou conhecido mundialmente ao propor a ruptura de sua geração com o realismo fantástico predominante na literatura latino-americana, tendo como principal exemplo o livro Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques. McOndo (trocadilho com a Macondo de G. G. Marques) é a sua proposta literária para uma nova literatura, escrita por “uma geração que comia no McDonald’s e assistia MTV”, mais preocupada com valores existenciais e a metalinguagem.

Em Baixo Astral os dramas, anseios, crises de um adolescente são apresentados em uma narrativa clara e direta com incontáveis referências literárias (Salinger), musicais (Stones, Blondie, Diana Ross), cinematográficas (The Blues Brothers, O Gigolô americano) e de consumo durante todo o livro.

O romance se passa no Chile de 1980, obscurecido pela sanguinária ditadura de Pinochet. As diversas citações à cultura pop, mais precisamente a cultura de massa americana, denunciam uma juventude afastada dos valores culturais de seu país, o total descrédito com a política e o insistente desejo de ter que sair fora, sair de um Chile asfixiante, de uma vida que nada diz.

A situação caótica imposta pelo regime ditatorial talvez explique o desencanto e o constante mau humor do personagem principal Matías Vicuña. Afinal, uma política repressiva dilacera qualquer tentativa de sonho, de pensamento crítico e vontade de viver.

O romance percorre onze dias na vida do jovem Vicuña, período em que variadas situações acontecem, inclusive uma viagem ao Rio de Janeiro, metáfora do que seria um rito de passagem para uma vida adulta que se aproxima. Na cidade maravilhosa, no Posto 9 de Ipanema Vicuña aproveita todas as aventuras que um adolescente pode fazer sem ninguém para recriminá-lo. Do sexo à cocaína, o garoto cai dentro das experiências possíveis e impossíveis do desbunde carioca.

Quando retorna para sua Santiago, o mal-estar do ambiente chileno desestimula gradativamente o jovem, que se encontra entendiado com tudo ao seu redor: "Me sinto entediado. Sozinho. É que não acontece nada. Não me acontece nada. Apenas babaquices deprimentes. Ou sacais". (FUGUET, p 167. 2001).

Seu cotidiano no Chile passa pelas festinhas, baseados, transas, escola, saudade do amor que deixou na viagem ao Brasil, a indecisão com a menina que se amarra e um sentimento de inquietação incontrolável, faz com que se afaste cada vez mais de tudo e de todos e se concentre nas suas preferências culturais.

Aqui entra a sua admiração pelo barman Alejandro Paz, que sonha em morar nos Estados Unidos, e apresenta o livro O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger. O personagem Holden Caulfield passa a ser idolatrado pelo garoto, que passa a viajar em diálogos imaginários com o personagem. A intertextualidade com o romance de Salinger torna-se intensa e explícita, e são muito bem apropriadas por Fuguet no decorrer do livro, assim como todas as citações de bandas e filmes. Tantas referências culturais talvez remetam ao passado de crítico de música e cinema do escritor no jornal Mercurio (Chile).

Baixo Astral é um ensaio à desilusão, à falta de perspectiva, aos conflitos de um adolescente inseguro com medo da aproximação da vida adulta. Entretanto, o romance de Fuguet consegue ir além ao retratar o medo, a insegurança e as irresponsabilidades que surgem no decorrer da vida de qualquer pessoa em qualquer fase. Talvez elas sejam mais intensas na adolescência. E é exatamente a incerteza que une pai (sedento por voltar à juventude) e filho no romance, e a fuga para o sexo e as drogas. É pela depressão de Matías Vicuña, a desilusão e a falta de sonhos de sua geração que vemos o mal que a repressão pode causar. Baixo Astral é um grande livro.



FUGUET, Alberto. Baixo astral. Editora Record. Rio de Janeiro, 2001.

Gogô, o anjo torto da Babilônia

Gogô
Gogô do fusca que invadia qualquer parada
Gogô aliás Gogô sim invade qualquer parada

Gogô
Gogô que perde a parada
Gogô pára o carro
Gogô procura levanta o banco e o tapete
Gogô parada sumiu caiu pelo buraco do chão do carro

Gogô
Gogô do rolé no carro
Gogô em movimento janela aberta
Gogô parado janela fechada

Gogô
Gogô do grau
Gogô da batida de mel
Gogô do uísque
Gogô da cachaça

Gogô
Gogô do Beton,
Gogô da praia
Gogô do vôlei

Gogô
Gogô do futebol
Gogô zagueiro atacante doidão
Gogô da pelada na Quinta

Gogô
Gogô tricolor de coração

Gogô
Gogô dos shows
Gogô circo voador
Gogô apoteose
Gogô maracanãzinho
Gogô fundição

Gogô
Gogô da mulherada
Gogô barra
Gogô centro
Gogô copacabana
Gogô lapa
Gogô mimosa

Gogô
Gogô parceiro de trampo
Gogô de paradas certas e erradas

Gogô
Gogô amigo
Gogô que sempre colocou a galera em primeiro plano

Gogô
Gogô brother
Gogô das tijucanas madrugadas
Gogô meia-porta
Gogô jaime
Gogô batista
Gogô varnhagem

Gogô
Gogô da Babilônia

Encontrou a noite que nunca tem fim...

Vá em paz, amigo!

(Riso, 20/09/2007 )

Wood & Stock – sexo, orégano e rock’n’roll

para o meu brother Fabio


Comprei esta semana o dvd Wood & Stock – sexo, orégano e rock’n’roll, inspirado nos personagens da extinta e saudosa revista Chiclete com Banana, de Angeli, publicada nos anos 1980 e em alguns dos principais jornais do país, como o Jornal do Brasil e a Folha de São Paulo.

Retomar o contato com a dupla de velhos hippies é, de certa maneira, recordar algumas passagens da minha adolescência e um pouco da minha formação cultural através das HQs. Foi mais ou menos assim: em meados dos anos 80, acho que em 86/87, comecei a ter contato com as revistas Circus, Chiclete com Banana e Animal, revistas alternativas de temática underground que em nada pareciam com as bobagens de super-heróis da DC e Marvel Comics. A Circus posteriormente desmembrou-se na já citada revista do Angeli, Piratas do Tietê (Laerte) e Geraldão (Glauco), e os três criaram a famosa tirinha Los 3 amigos, que também lançou algumas edições.

A Chiclete caracterizava-se pela crítica aos tipos sociais da capital paulistana, tais como o punk Bob Cuspe, o garanhão Bibelô, a junkie Rê Bordosa, Walter Ego, os Skrotinhos entre outros. Anos depois, Angeli aprimorou o estilo e criou as séries República dos Bananas e Tipinhos Inúteis, escancarando o ridículo de determinadas figuras urbanas. Mas foi com a dupla bicho-grilo Wood & Stock que mais me identificava e me divertia. Através das tirinhas dos dois personagens perdidos no tempo, que tive estímulo para conhecer diversas bandas de rock dos anos 60 e 70, como Grand Funk, Free, The Cream, e a procurar informações sobre acontecimentos e pessoas que envolviam o universo da contracultura, tais como Timothy Leary, Aldous Huxley, Jim Morrison, Arembepe, Mutantes etc. Assim como a inevitável experiência de fumar orégano. Uma grande merda.

O filme? Bom, a história trata da tentativa de retomada da banda que a dupla tinha nos loucos anos 70, o Chiqueiro Elétrico, para participação em um festival de música e, assim, pagar as dívidas do apartamento de Wood com o dinheiro da premiação. Este, passa por diversos problemas: abrigou o amigo Stock após ser despejado de casa, agüenta a barra da separação da esposa Lady Jane que resolveu dar um tempo no relacionamento, e a incompatibilidade de gênios com o filho careta Overall.

É engraçado, legal, as dublagens estão ótimas, Tom Zé como Raul Seixas, Rita Lee ataca de Rê Bordosa e tal... os movimentos engraçadíssimos... trilha sonora ótima e a banda Chiqueiro Elétrico é do caralho! Contudo, as passagens do filme são as mesmas das tirinhas, optaram por não criar uma história específica para o filme. Considero uma falha, pois para quem conhece as mesmas o filme não acrescenta muito, só a curiosidade da animação. Mesmo assim, valeu! Mas poderia ter sido mais ousado. Provavelmente seqüelas de quem fuma orégano.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Controle – a história de Ian Curtis

O Festival do Rio traz finalmente o novo filme sobre a vida do vocalista Ian Curtis, da lendária banda inglesa Joy Division, intitulado “Controle – a história de Ian Curtis” (Control), direção do estreante Anton Corbijn, e baseado no livro “Touching From A Distance” escrito pela viúva do músico Deborah Curtis.

O Joy Division foi um grupo fundamental para compreender a cena do rock no decorrer dos anos 1980, mais precisamente o cenário inglês da cidade de Manchester, e a fusão do rock com o eletrônico. De curtíssima duração, surgiu no meio da onda punk em 1979, e deixou lendárias apresentações com direito a ataques epiléticos de Ian Curtis. A banda formou uma legião de fãs enquanto durou até o suicídio de seu vocalista e principal compositor em 1980.

Arredio, solitário e um tanto estranho: Ian Curtis. Suas letras eram carregadas de um lirismo depressivo, angustiante, com temáticas obscuras fortalecidas por uma sonoridade incômoda que influenciou diversas bandas de Manchester. Happy Mondays, Stones Roses... e, claro, New Order. Este, aliás, se tornou um dos mais influentes grupos dos últimos anos e foi formado pelos outros quatro integrantes do Joy Division, que partiram para um som mais eletrônico, porém ainda guardando um certo ar sombrio nas composições, herança de Curtis.

Apesar de sua rápida passagem por este plano, a beleza das composições de Ian Curtis imortalizaram-no, como ficou comprovado com o excelente álbum, que acabou póstumo, “Closer”, lançado três meses após a sua morte aos 23 anos de idade.


Controle, a história de Ian Curtis
Titulo Original: Control
Direção: Anton Corbijn
País: Reino Unido
Ano: 2007
Duração: 119min

Sinopse: Os últimos anos da vida de Ian Curtis, vocalista da lendária banda inglesa Joy Division. Curtis, que teve uma trajetória curta e intensa, ficou famoso por seu talento de letrista e por suas performances épicas à frente da banda. Sofrendo com os ataques de epilepsia, sem saber como lidar com o seu talento e dividido entre o amor por sua mulher e filha e um caso extraconjugal, ele se enforcou em 18 de maio de 1980, aos 23 anos. Baseado no livro de Deborah Curtis, viúva do cantor. Menção Especial na Camera de Ouro da Quinzena dos Realizadores em Cannes 2007.

Mostra: Midnight Movies
Domingo - 30/09/2007 Espaço de Cinema 1 23:30:00 hs EC164
Segunda - 01/10/2007 Palacio 2 16:30:00 hs PL242
Segunda - 01/10/2007 Palacio 2 21:30:00 hs PL244
Quinta - 04/10/2007 Est Barra Point 2 19:00:00 hs BP255


Composições

Love Will Tear Us Apart

When routine bites hard,
And ambitions are low,
And resentments ride high,
But emotions won't grow,
And we're changing our ways, taking different roads.

Then love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.

You cry out in your sleep,
All my failings exposed.
And there's a taste in my mouth,
As desperation takes hold.
Just that something so good just can't function no more.

But love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.


Atmosphere

Walk in silence,
Don't walk away, in silence.
See the danger,
Always danger,
Endless talking,
Life rebuilding,
Don't walk away.

Walk in silence,
Don't turn away, in silence.
Your confusion,
My illusion,
Worn like a mask of self-hate,
Confronts and then dies.
Don't walk away.

People like you find it easy,
Naked to see,
Walking on air.
Hunting by the rivers,
Through the streets,
Every corner abandoned too soon,
Set down with due care.
Don't walk away in silence,
Don't walk away


I Remember Nothing

We were strangers.
We were strangers, for way too long, for way too long,
We were strangers, for way too long.
Violent, violent,
Were strangers.

Get weak all the time, may just pass the time,
Me in my own world, yeah you there beside,
The gaps are enormous, we stare from each side,
We were strangers for way too long.

Violent, more violent, his hand cracks the chair,
Moves on reaction, then slumps in despair,
Trapped in a cage and surrendered too soon,
Me in my own world, the one that you knew,
For way too long.
We were strangers, for way too long.
We were strangers,
We were strangers, for way too long.
For way too long

Mia Couto e Ondjaki no Festival do Rio

Dia 21/09 iniciará uma nova maratona de cinema no Festival do Rio e espero conseguir ver algumas produções periféricas. Dentre várias opções, destaco os filmes Terra sonâmbula, baseado no livro homônimo de Mia Couto, e Oxalá crescam pitangas, de Ondjaki e Kiluanje Liberdade.



A seguir os dias das apresentações:


Terra Sonâmbula
Sleepwalking City

Sinopse: Moçambique, Guerra Civil. Muidinga, menino de olhos sonhadores, ouve constantemente o som do mar. Este som faz-lhe nascer no peito o sonho, de que se ele for até ao mar, vai encontrar de certeza a sua família.

Ele lê num diário, encontrado ao lado de um cadáver, a história de uma mulher que se encontra num navio e que procura o seu filho e convence-se de que o menino procurado é ele. Vai então à procura da mulher, com Tuahir, velho duro e cheio de histórias, que o quer como um filho, apesar de não o conseguir mostrar. Por isso, Tuahir não quer que Muidinga encontre a família.

A viagem é dura: eles movem-se entre refugiados em estado de delírio. Para não nlouquecerem, têm-se um ao outro. A estrada por onde eles andam, como sonâmbulos, é mágica: entende os seus desejos e move-os de um lugar a outro e não os deixa morrer enquanto eles não alcançarem o tão sonhado mar.



Mostra: Expectativa 2007
Em Exibição
Sábado - 22/09/2007 Est Barra Point 1 14:15:00 hs BP105
Sábado - 22/09/2007 Est Barra Point 1 18:45:00 hs BP107
Quinta - 27/09/2007 Espaço de Cinema 2 14:45:00 hs EC239
Quinta - 27/09/2007 Espaço de Cinema 2 21:30:00 hs EC242




OXALÁ CRESÇAM PITANGAS, de Kiluanje Liberdade e Ondjaki

ANGOLA: 30 anos de independência. 3 anos de paz. Capital: Luanda. Cidade construída para 600.000 habitantes. Actualmente com cerca de 4 milhões. Cruzamento de várias realidades e gente de todas as províncias. A vida desta cidade são as pessoas. Que pessoas? Através de 10 personagens, mostrar formas diferentes de viver e interpretar a cidade.

Oxalá Cresçam Pitangas revela a realidade por detrás da permanente fantasia luandense. 10 vozes vão expondo com ritmo, dignidade e coerência, um espaço ocupado por várias gerações e dinâmicas sociais complexas. Luanda ainda não havia sido filmada sob esta perspectiva realista e humana: conflitos entre a população e a esfera política, a proliferação do sector informal, as desilusões e as aspirações, o questionamento do espaço urbano e do futuro de uma Angola em acelerado crescimento.

10 personagens falam também das suas vidas, do seu modo de agir sobre a realidade, da música que não pode parar. Aparece uma Luanda onde a imaginação e a felicidade defrontam as manobras de sobrevivência. Onde a Língua é mexida para se adaptar às necessidades criativas de tantas pessoas e tantas linguagens.

Este é um filme sobre uma Luanda que recria constantemente a sua identidade: os dias, as noites e todos os ritmos da cidade que não sabe adormecer. Luanda mistura fenómenos urbanos e rurais. O sector informal, sendo a grande alternativa, agita o país e dinamiza as relações. Os jovens colocam diariamente a imaginação ao serviço da sobrevivência e da felicidade, inventando formas de viver e sobreviver – por necessidade e pelo gosto de se sentirem vivos.

Palco de arte, festa e alegria, em Luanda a tristeza e a felicidade convivem com a euforia. Os casamentos são sempre festivos; os funerais nem sempre são tristes. Há um substracto intencional de felicidade nas acções e intenções dos luandenses.

A linguagem falada traduz um modo de pensar mais local e típico. Num português carregado de calões e de adaptações, reflecte-se o modo interventivo de as pessoas agirem sobre a realidade. Nos gestos e nas falas, aparece, pois, a fantasia que acompanha os ritmos do quotidiano. Acidade vive, noite e dia, com música nos lares, nas viaturas, nas ruas. É possível ter uma vivência rítmica do quotidiano pela importância que se dá à música e ao convívio. Com uma visão que acentua a esperança no futuro, Oxalá Cresçam Pitangas é uma viagem pelas pessoas, pelas ruas e pelas histórias de Luanda.
http://www.kazukuta.com/pitangas/


Mostra: Expectativa 2007
Em Exibição
Sexta - 21/09/2007 Estação L. Alvim 1 16:00:00 hs LA002
Sábado - 22/09/2007 Cine Glória (Memorial GV) 16:00:00 hs
Sábado - 22/09/2007 Cine Glória (Memorial GV) 19:45:00 hs
Domingo - 23/09/2007 Espaço de Cinema 3 12:00:00 hs EC315
Domingo - 23/09/2007 Espaço de Cinema 3 20:00:00 hs EC319



Mais informações: http://www.festivaldorio.com.br/site/

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Pequenos Milagres - Grupo Galpão


O Grupo Galpão comemora 25 anos, e para festejar apresenta o espetáculo “Pequenos milagres” no Teatro Sesc-Ginástico até o dia 30/09.
São quatro estórias intercaladas sobre dramas do cotidiano de pessoas comuns. Está fantástico! Lindo, lírico e necessário em tempos de sonhos esgarçados.

O texto a seguir encontra-se em www.grupogalpao.com.br.

O espetáculo Pequenos Milagres, direção de Paulo de Moraes, é composto por quatro textos selecionados da campanha Conte sua História, que o Grupo Galpão realizou em 2006, especialmente para criar o novo espetáculo.

A campanha alcançou pleno êxito recolhendo cerca de 600 histórias (via cartas e e-mails) provenientes de várias partes do país. Desse total, foram pré-selecionadas, pelos atores, o diretor e o dramaturgo, Maurício Arruda Mendonça, as 50 que mais representavam o cotidiano das pessoas. Após vários workshops, chegou-se às quatro histórias que compõem o texto final da peça.

Segundo Paulo de Moraes, esse conjunto de histórias oferece um olhar teatral singular sobre a vida brasileira. "Um projeto dessa natureza permite discutir questões relevantes, com personagens muito próximos a nós, que revelam os sonhos das pessoas comuns", diz.

A estréia de Pequenos Milagres marcou o início das comemorações dos 25 anos do Grupo Galpão, em 2007. A estréia aconteceu em Belo Horizonte, no Centro Cultural Galpão Cine Horto e cumpriu turnê pelo Rio de Janeiro, São Paulo e principais Festivais do país.
Os quatro textos que compõem a peça são:

CABEÇA DE CACHORRO
Inspirado no texto homônimo de João Celso dos Santos, recebido durante a campanha Conte sua História.
Essa história representa um rito de passagem em que um menino do interior, de apenas onze anos, se vê obrigado a enfrentar os desafios da cidade grande para cumprir uma importante missão que lhe foi confiada por seu pai. Fragmentada em quatro partes, ela é contada como uma aventura ao longo da peça.

O PRACINHA DA FEB
Inspirado no texto (sem título) enviado por Thereza Alvarenga, recebido durante a campanhaConte sua História
Conta a história de um velho expedicionário que re-visita seu passado a partir do olhar de uma jovem enfermeira que trabalha com pessoas da terceira idade.

O VESTIDO
Inspirado no texto Vestido do Desejo, de Maristela de Fátima Carneiro, recebido durante a campanha Conte sua História
Retrata a história de uma mulher que realiza um antigo sonho da adolescência, apresentando a delicadeza do sonho de uma menina.

CASAL NÁUFRAGO
Inspirado em texto anônimo e sem título recebido durante a campanha Conte sua História
Abordagem sobre a vida de um casal cuja relação está há muito tempo desgastada e que, de repente, se vê na iminência de ter todos os seus problemas financeiros resolvidos através do concurso "Show do Milhão". O texto fala sobre a crueza de duas vidas em que existe pouco espaço para o sonho.

Uzodinma Iweala: Buraco Negro

No texto a seguir, temos a visão do jovem escritor nigeriano Uzodinma Iweala acerca dos problemas do continente africano. Iweala escreveu "Feras de nenhum lugar" (Nova Fronteira), seu primeiro romance, que trata da violência da guerra em seu país sob o olhar de uma criança obrigada a matar para não morrer.
BURACO NEGRO
Ocidente ignora esforços da África para superar a pobreza e usa ajuda humanitária para ratificar estereótipos
Folha de São Paulo. Caderno Mais!, 09 de setembro de 2007. A íntegra deste texto saiu no Le monde. Tradução de Clara Allain.

UZODINMA IWEALA

No outono de 2006, pouco após o meu retorno da Nigéria, fui interpelado por uma estudante loira e graciosa cujos olhos azuis pareciam combinar com as contas da pulseira “africana” que usava. “Salve Darfur!”, ela gritava atrás de uma mesa recoberta de folhetos exortando os estudantes a “agir já!”, a “acabar com o genocídio em Darfur!” (área do Sudão onde a guerra civil matou pelo menos 180 mil pessoas desde 2003.

Minha aversão a esses estudantes que se engajam incondicionalmente nas causas que estão na moda quase me levou a dar meia-volta, mas o grito que ela lançou em seguida me desestabilizou. “Quer dizer que o senhor não quer nos ajudar a salvar a África?”, vociferou a garota.

Parece que, de algum tempo para cá, oprimido pelo sentimento de culpa pela crise humanitária que provocou no Oriente Médio, o Ocidente vem se voltando para África para ali buscar sua redenção.

Estudantes idealistas, celebridades como Bob Geldof (músico e ativista) e políticos como Tony Blair (ex-primeiro-ministro britânico) se atribuíram como missão levar a luz ao continente negro.

Chegam de avião para passar um período na África ou participar de uma missão de investigação ou, ainda, para adotar uma criança – um pouco como meus amigos e eu, em Nova York, tomamos o metrô para ir adotar um cachorro abandonado no canil municipal.

Geração sexy
É a nova imagem que o Ocidente quer adotar: uma geração sexy e politicamente ativa cujo método preferido para divulgar sua mensagem é publicar anúncios de página inteira em jornais, com celebridades no primeiro plano e pobres deserdados de África ao fundo.

Mas o que talvez ainda seja mais interessante é a linguagem empregada para descrever a África que se pretende salvar.

Por exemplo, a campanha lançada pela organização Save the Children (Salve as Crianças), intitulada “I am African” (Sou Africano), apresenta retratos de celebridades ocidentais, em sua maioria brancas, com “marcas tribais” pintadas no rosto, sobre o slogan “sou africano” escrito em letras garrafais. Abaixo, em letras menores, vê-se a frase: “Ajude-nos a frear a hecatombe”.

Por mais que sejam bem-intencionadas, essas campanhas propagam o estereótipo de uma África que seria um buraco negro de doença e morte.

Artigos e reportagens não param de falar de dirigentes africanos corruptos, senhores de guerra, conflitos “tribais”, crianças exploradas, mulheres maltratadas e vítimas de mutilação genital.

Tempos coloniais
A relação entre a África e o Ocidente não é mais fundamentada em preconceitos abertamente racistas, mas esses artigos lembram os tempos do colonialismo europeu, quando se enviavam missionários à África para nos levar educação, Jesus e a “civilização”.

Todo africano, incluindo eu mesmo, não pode deixar de se alegrar com a ajuda que o mundo nos dá, mas isso não nos impede de perguntar a nós mesmos se essa ajuda é realmente sincera ou se ela é dada com a idéia de afirmar sua superioridade cultural.

Cada vez que uma estudante – embora sincera – fala dos moradores de aldeias que dançaram para ela para agradecer sua ajuda, faço uma careta.

Cada vez que um diretor de Hollywood produz um filme sobre a África cujo herói é ocidental, eu faço não com a cabeça – porque os africanos, apesar de sermos pessoas muito reais, não fazemos mais que servir de validação da imagem imaginária que o Ocidente tem de si próprio.

E não apenas essas descrições tendem a ignorar o papel às vezes essencial que o Ocidente desempenhou na gênese de muitas situações deploráveis que afligem o continente como elas também ignoram o trabalho incrível que os próprios africanos fizeram e continuam a fazer para resolver esses problemas.

Dois anos atrás eu trabalhei num campo de pessoas deslocadas na Nigéria, sobreviventes de um levante que provocou a morte de mil pessoas e o deslocamento de outras 200 mil.

Fiéis a seus hábitos, os órgãos de imprensa ocidentais falaram longamente das violências, mas não do trabalho humanitário realizado pelas autoridades locais e nacionais em favor dos sobreviventes – com muito pouca ajuda internacional.

Funcionários sociais dedicaram seu tempo e, em muitos casos, doaram seus próprios salários para socorrer seus compatriotas. São eles que salvam a África, e, como acontece com muitos outros em todo o continente, seu trabalho não encontra reconhecimento nenhum no exterior.

Em junho o grupo dos oito países mais industrializados reuniu-se na Alemanha com várias celebridades para discutir, entre outros temas, como salvar a África. Espero que antes da próxima cúpula do G8 o mundo tenha finalmente compreendido que a África não quer ser salva.

A África quer que o mundo reconheça que, por meio de parcerias eqüitativas com outros membros da comunidade internacional, ela será capaz de alcançar um reconhecimento inusitado, por conta própria.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Sem título ou o fim das instituições democráticas e a vitória da ilusão

(após a absolvição de Renan Calheiros)

Sessão secreta, voto secreto. Homens públicos eleitos diretamente pela população não podem votar secretamente. Todos os seus passos, enquanto representantes do povo, devem ser claros e abertos a todos. Durante todo o mandato, qualquer parlamentar deve satisfações à sociedade, e esta deve cobrar, exigir, participar.

Entretanto, diante do que anda acontecendo pelo país nos últimos anos, ou o que sempre aconteceu desde que um certo Cabral apareceu por aqui, o meu descrédito hoje está próximo do total. Está cada vez mais difícil pensar, escrever, sonhar.

Mas tudo bem... afinal, já estão abertas as inscrições para o Big Brother Brasil 8. Nem tudo está perdido.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Mia Couto: Moçambique – 30 anos de Independência: no passado, o futuro era melhor?

O escritor moçambicano Mia Couto é hoje um dos principais nomes da literatura em língua portuguesa contemporânea. Além do belo trabalho como escritor, Mia, como vários outros intelectuais africanos, atua com críticas contundentes ao descaso dos países dominantes e à submissão de seus pares, que ficam esperando o assistencialismo vindo do exterior. Detentor de um olhar atento, Mia Couto clama por uma postura mais independente não só dos moçambicanos, mas de toda a África.
Espero que gostem.


Moçambique – 30 anos de Independência: no passado, o futuro era melhor?
MIA COUTO


Texto pronunciado por Mia Couto em Conferência realizada em Deza Traverse Suíça, por ocasião dos 30 anos de independência de Moçambique. Junho 2005.


Nasci e cresci numa pequena cidade colonial, num mundo que já morreu. Desde cedo, aprendi que devia viver contra o meu próprio tempo. A realidade colonial estava ali, no quotidiano, arrumando os homens pela raça, empurrando os africanos para além dos subúrbios. Eu mesmo, privilegiado pela minha cor da pele, era tido como um “branco de segunda categoria”. Todos os dias me confrontava com a humilhação dos negros descalços e obrigados a sentarem-se no banco de trás dos autocarros, no banco de trás da Vida. Na minha casa vivíamos paredes-meias com o medo, perante a ameaça de prisão que pesava sobre o meu pai que era jornalista e nos ensinava a não baixar os olhos perante a injustiça. A independência nacional era para mim o final desse universo de injustiças. Foi por isso que abracei a causa revolucionária como se fosse uma predestinação. Cedo me tornei um membro da Frente de Libertação de Moçambique e a minha vida foi, durante um tempo, guiada por um sentimento épico de estarmos criando uma sociedade nova.

No dia da Independência de Moçambique eu tinha 19 anos. Alimentava, então, a expectativa de ver subir num mastro uma bandeira para o meu país. Eu acreditava, assim, que o sonho de um povo se poderia traduzir numa simples bandeira. Em 1975, eu era jornalista, o mundo era a minha igreja, os homens a minha religião. E tudo era ainda possível.

Na noite de 24 de Junho, juntei-me a milhares de outros moçambicanos no Estádio da Machava para assistir à proclamação da Independência Nacional, que seria anunciada na voz rouca de Samora Moisés Machel. O anúncio estava previsto para a meia-noite em ponto. Nascia o dia, alvorecia um país. Passavam 20 minutos da meia-noite e ainda Samora não emergira no pódio. De repente, a farda guerrilheira de Samora emergiu entre os convidados. Sem dar confiança ao rigor do horário, o Presidente proclamou: “às zero horas de hoje, 25 de Junho..”. Um golpe de magia fez os ponteiros recuarem. A hora ficou certa, o tempo ficou nosso.

Não esqueço nunca os rostos iluminados por um irrepetível encantamento, não esqueço os gritos de euforia, os tiros dos guerrilheiros anunciando o fim de todas as guerras. Havia festa, a celebração de sermos gente, termos chão e merecermos céu. Mais que um país celebrávamos um outro destino para nossas vidas. Quem tinha esperado séculos não dava conta de vinte minutos a mais.

Trinta anos depois poderíamos ainda fazer recuar os ponteiros do tempo? A mesma crença mora ainda no cidadão moçambicano? Não, não mora. Nem podia morar. Em 1975, nós mantínhamos a convicção legítima, mas ingênua de que era possível, no tempo de uma geração, mudarmos o mundo e redistribuirmos felicidade. Não sabíamos quanto o mundo é uma pegajosa teia onde uns são presas e outros predadores.

Trinta anos é quase nada na história de um país. Estamos já distantes da injustiça colonial. Mas estamos ainda longe de cumprir o sonho que nos fez cantar e dançar na noite de 25 de Junho. Uma parte dessa expectativa ficou por realizar. Hoje já não acorreríamos com a mesma fé para celebrar uma nova anunciação. Mas isso não quer dizer que estamos menos disponíveis para a crença. Estaremos, sim, mais conscientes que tudo pede um caminho e um tempo.

Poderemos recorrer a explicações, apontar dedos acusadores. Tudo isso será pouco produtivo. Não se pode esperar que um país saído do atraso da dominação colonial possa realizar aquilo que velhas nações independentes estão ainda construindo. Moçambique está aprendendo a ser soberano num mundo que aceita muito pouco a soberania dos outros. O céu que parecia infinito foi ficando estreito para as chamadas pequenas bandeiras.

No mesmo ano em que se desintegrava o império colonial português, em 1975, os Estados Unidos da América eram derrotados no Vietname. O tempo parecia correr a favor dos povos “pequenos”, capazes de enfrentar a arrogância dos poderosos. Essas vitórias criaram a ilusão de que um mundo mais justo estava despontando. Mas o sistema mundial cedo se reajustou desses revezes. A Independência de Moçambique teve que enfrentar uma dualidade: representou uma ruptura com o colonialismo mas, ao mesmo tempo, funcionou como um passo para uma maior integração num sistema capitalista que se globalizava. A essa condição ambivalente não poderíamos escapar.

Meus senhores e minha senhoras,
Caros amigos,
No meu romance Terra Sonâmbula criei um personagem que, por nascer no dia da Independência, a vinte e cinco de Junho, foi baptizado de Junhito. A história decorre no decurso da nossa guerra civil que se prolongou durante 16 anos.

Certa noite, o pai de Junhito é assaltado por um pressentimento: o seu filho iria morrer em breve. Era isso o que a guerra reclamava: a morte desse que nascera em Junho. Para salvar o filho, a família resolveu transferi-lo para a capoeira que ficava no quintal. Ali Junhito aprenderia a comportar-se como as galinhas, comendo as sobras e dormindo ao relento. Resignado a sobreviver sem glória, sem brilho, sem substância.

Junhito foi-se tornando numa sombra e, em casa, os familiares estavam proibidos até de mencionar o seu nome. A mãe, mesmo ela, parecia conformada. Contudo, às escondidas da noite, ela visitava a capoeira. Sentava-se no escuro e cantava uma canção de embalar, a mesma que servira para adormecer os outros irmãos. Junhito, de início, acompanhava a mãe no canto. Mas depois, o menino já nem sabia soletrar as humanas palavras. Esganiçava uns cóós e ajeitava a cabeça por baixo do braço. E assim adormecia, sonhando que, certa vez, teria sido um homem.

A metáfora no romance é simples, quase linear. Na altura, eu denunciava a nossa progressiva perda de soberania, e uma crescente domesticação do nosso espírito de ousadia. Poderíamos ser nação mas não demasiado, poderíamos ser povo mas apenas se bem comportado.

Num processo difícil e conflituoso, Moçambique criou a reputação de ser um caso de excepção em África. Esse bom-nome, devo dizer, é merecido. Esse prestígio foi conquistado, não é uma prenda de nenhum paternalismo. Fomos capazes de produzir a Paz. Fomos capazes de criar democracia formal, de construir estabilidade e de garantir liberdades de expressão e de pensamento. Tenho orgulho nesse processo. Mas tenho também receio. Porque o caminho que percorremos não foi exactamente escolhido por nós, nem está sendo testado à medida da nossa vontade. O nosso êxito não pode continuar a ser medido apenas pelo sucesso da aplicação de um directório de receitas políticas e financeiras. Ao contrário, deveríamos ser valorizados pelo modo como repensamos criativamente o nosso lugar no mundo.

Nos gloriosos anos da luta de libertação nós gritávamos “Independência ou Morte, Venceremos”. Hoje sabemos: a independência não é mais do que a possibilidade de escolhermos as nossas dependências. Na década de 70, o mundo oferecia a possibilidade de diferentes opções e alianças estratégicas. Hoje as economias nacionais perfilam-se perante um modelo sem alternativa. Escolhemos o que outros escolheram por nós. Uma parte da nossa alma foi já, mesmo sem o sabermos, conduzida para a capoeira e ali esquece a irreverência, a originalidade e o desejo de ser único.

A redução da soberania não é um processo que esteja atingindo especificamente Moçambique. É um processo generalizado. Todas nações são hoje menos nacionais, todo o cidadão é menos dono do si mesmo. Uns dizem que, agora, somos todos mundo. Mas ninguém pode ser do mundo se não tiver a sua pequena aldeia.

Como a Europa vê África

Os continentes são, sobretudo, representações feitas e refeitas de acordo com os tempos. A África de hoje é uma co-produção euro-afro-americana. A versão mais recente dessa co-produção é marcada pela morte e decadência. Cadeias de TV estão confirmando essa agonia, entre doenças e guerras. O excesso de imagens dos dramas de África teve um efeito perverso: o continente deixou de ser visível. Perdeu visibilidade porque tudo parece estar já visto. Aos olhos do resto do mundo, África (ou uma parte dela) deixou de existir. Do mapa cor-de-rosa se passou ao monocromático mapa do desespero.

O apocalipse africano esteve demasiado tempo na montra, foi excessivamente filmado, fotografado, torcido e retorcido para uso da compaixão. Deixou de existir disponibilidade para entender o que está por detrás dessas imagens. Afinal, a fome a guerra são apenas os sinais de uma tragédia mais funda e mais antiga. Essa tragédia assenta em razões internas mas assenta também no lugar periférico de África e nas trocas desiguais do comércio internacional.

Uma certa esquerda europeia transitou da simpatia para um pessimismo militante. A lágrima solidária foi substituída pela indiferença e pelo descrédito. Os africanos, por seu turno, foram eternizando um sentimento de culpabilização dos outros, acreditando tratar-se da continuação de um “complot” antigo para os dizimar.

De um e outro lado, se acumularam desilusões e impaciências. Uma mesma ignorância do Outro foi transitando ao longo da História. Aos profetas do socialismo seguiram-se os profetas do neoliberalismo agitando apressadas receitas financeiras para salvar os pobres. Mas a pobreza insiste, teimosa como uma incurável doença que nos devora do outro lado do Mediterrâneo.

A opção para os países doadores parece simples: dar mais ou deixar de dar. As recentes notícias mostram que, nos próximos tempos, se irá dar um pouco mais. Pelo menos em algumas nações terá vencido a alternativa mais humanitária. Contudo, poucos se interrogarão sobre a necessidade de mudar a qualidade da relação entre o Norte e o Sul.

Como nós vemos a Suíça

A Suiça já foi para muitos moçambicanos não um país mas o nome de uma missão religiosa. A Missão Suiça implantou-se no Sul de Moçambique, enfrentando terríveis suspeitas do regime colonial português. Henri Junod foi expulso de Moçambique em 1895 porque ensinava as chamadas “línguas dos nativos”. O missionário ajudava moçambicanos como Eduardo Mondlane a moçambicanizarem-se enquanto, nesse processo, ele mesmo se africanizava, acabando por solicitar que fosse enterrado em terras de Moçambique.

Setenta anos mais tarde, um outro suíço converteu-se numa figura de dimensão quase mitológica. Tratava-se do médico René Gagnaux, uma espécie de filantropo da nova vaga, um homem que dedicou a sua vida a atender os mais pobres. A Suíça, para muitos, era a terra do Gagnaux. Um dos seus filhos, agora moçambicano, lidera uma das principais forças políticas em nível da cidade de Maputo.

Hoje temos da Suiça uma percepção mais moderna e designamo-la por via de um nome curioso: “país doador”. O mundo está hoje dividido entre os que dão e os que recebem. Como se fosse uma condição natural, genética, perpétua. Nós, os receptores daquilo que se chama “ajuda” já tivemos outros nomes: fomos Terceiro Mundo, países em vias desenvolvimento, territórios do Sul, países sub-desenvolvidos, nações da periferia.

A dança dos nomes não terminou. Agora, no quadro do politicamente corrigido, nós temos, pela primeira vez, o direito de partilhar de um mesmo nome: somos ambos, ricos e pobres, chamados de “parceiros”. Este novo nome é mais simpático mas ele colide com uma questão de princípio: não se resolve nas palavras aquilo que não está resolvido na substância.

As mútuas atribuições de culpas

O embaixador da Suiça em Moçambique, o meu amigo Dr. Adrian Hadorn, é testemunha da minha insistente intervenção em Moçambique para combater a tendência de vitimização por parte dos africanos. Enquanto continuarmos culpando os europeus pelos nossos próprios falhanços não seremos capazes de nos olharmos para nós próprios como principal motor da mudança. Assumir a condição de sujeito histórico: esse era o maior e mais instigante desafio da Independência Nacional.

É infindável a soma de argumentos para justificar a cleptocracia e a corrupção dentro de continente africano. Alguns intelectuais africanos vêm na importação de modelos externos a origem de todos os males. Esta justificação encontra espaço em alguns doadores. Na linguagem moderna dos relatórios dos consultores este problema seria assim reportado: “falta de ownership das reformas estruturais”. Impostas de fora, essas reformas não poderiam ser implementadas. Mas tudo indica que, ao contrário, parte dessas reformas foi rápida e profundamente apropriada por elites nacionais que as usaram a favor do seu próprio enriquecimento. O problema não parece estar na origem dos modelos mas na sua natureza política. Os africanos africanizaram a mandioca. As elites fizeram o mesmo com as reformas estruturais.

Se alguns africanos acham que a culpa é apenas dos europeus, no sentido inverso, europeus há que acreditam que a culta cabe apenas aos africanos. Uma relação mais saudável entre uns e outros obrigaria a rupturas profundas, implicava poder começar de novo. Mas esse retorno ao grau zero não existe na História. Compete-nos questionar os pressupostos do nosso relacionamento recíproco.

Elegi para este pequeno texto alguns tópicos soltos. Não sou economista, sou um escritor cuja paixão reside num mundo que não existe. Mas não posso focar indiferente perante alguns assuntos que determinam nosso destino comum. Eis algumas das interrogações que gostaria de partilhar convosco.

O falso sentimento de desperdício

A opinião pública na Europa e nos EUA mantém a idéia de que África pode sair da situação de crise se gerir bem os fundos doados. A ajuda apenas é insuficiente porque é mal usada.

É certo que parte das doações tem sido desviada em benefício de elites minoritárias. Algumas dessas fortunas roubadas estão aqui, bem no coração da Europa, na forma de criminosas contas bancárias. Mas a grande verdade é que, mesmo bem usada, a actual ajuda não resolveria os problemas vitais das nações empobrecidas. Pelo contrário, o actual quadro da ajuda poderá estar agravando a condição de miséria do Terceiro Mundo.

Regressemos à idéia dominante de que os valores da ajuda são astronómicos. Na verdade, é necessário colocar essas quantias no devido contexto. Os cidadãos americanos acreditam, por exemplo, que o seu país destina 15 a 20 por cento do seu Orçamento para a ajuda externa. Estão errados. Os EUA gastam menos de 1 por centro nessa ajuda, uma ninharia comparada com os milhões que o governo paga por ano aos fornecedores de armamento.

Um escritor sabe contar, não sabe fazer contas. Mas um economista amigo ajudou-me a fazer umas somas e gostaria de partilhar os resultados convosco. Com os 175 biliões de USD que os EUA já gastaram na guerra do Iraque desde Marco de 2003 seria possível fazer o seguinte:

1) Instalar 40.000 pequenas e médias empresas produtivas relativamente modernas e competitivas na África Sub-Sahariana, gerando directamente 12 milhões de novos postos de trabalho com salários e condições de trabalho acima da actual média. Deste modo se arrancaria de forma permanente cerca de 60 milhões de Africanos das malhas da pobreza. Além disto, este investimento tornaria possível às economias africanas tirarem proveito efectivo das oportunidades comerciais que hoje já existem, como sejam o caso do AGOA (comércio preferencial com os EUA) e o EBA (everything-but-arms, comércio preferencial com a União Europeia). Isto significa que num espaço de tempo relativamente curto, o Produto Interno Bruto per capita da África Sub-Sahariana poderia ser triplicado, não à custa de ajuda mas com base em desenvolvimento e crescimento real da economia e uma melhor distribuição do rendimento gerado.

2) Além dessas empresas, com o dinheiro gasto no Iraque seria possível também construir mais 600 escolas técnico-profissionais de alta qualidade, onde poderiam ser formados, todos os anos, cerca de 300.000 trabalhadores qualificados para impulsionarem o desenvolvimento da agricultura, agroindústria, pesca, indústria, turismo, serviços, etc. Este treinamento permitiria que as empresas mencionadas acima pudessem funcionar bem com força de trabalho qualificada, com repercussões imediatas na produtividade e do nível de vida da maioria dos Africanos.

Ou refazendo as contas: os bilhões de dólares gastos no Iraque são suficientes para empregar mais 4 milhões de professores primários por um ano, ou para imunizar todas as crianças do Mundo contra diferentes doenças por 58 anos, ou para alimentar o Mundo durante os próximos 7 anos, ou ainda para terminar com o flagelo da malária em África e construir 2 milhões de novas habitações básicas.

Estes outros destinos a serem concedidos aos bilhões de dólares talvez fossem uma forma mais efectiva de combater a insegurança. Porque há um terror invisível que pode estar alimentando o terrorismo internacional. Esse é o terror da fome, da pobreza, da ignorância, o terrorismo do desespero perante a impossibilidade de mudar a vida.

Caros senhores,
Finalmente, quase nenhuma das nações desenvolvidas cumpriu aquilo que foi estipulado há trinta anos pelas Nações Unidas: destinar 0.7 por cento do seu orçamento para a ajuda externa. Em média, esse apoio não ultrapassa hoje os 0.25 por cento. Como se pode ver, não são apenas os países pobres que não estão cumprindo as obrigações internacionalmente assumidas.

O mais grave, porém, é que aquilo que nos é dado numa mão nos é retirado pela outra mão. Calcula-se que o proteccionismo e os subsídios retiram aos países pobres 2050 milhões de euros. Ou seja muitíssimo mais daquilo que é o valor da ajuda. Para além disso, os subsídios agrícolas na Europa e EUA representam um contra-senso na lógica que nos é imposta em relação aos mecanismos reguladores da economia. Numa palavra, os profetas do liberalismo de mercado não fazem em casa aquilo que propalam publicamente.

Mais grave ainda: está provado que 40 por cento do valor que se acredita dar aos países pobres é destinado a pagar a consultores internacionais. Na realidade, há hoje mais expatriados em África do que havia no tempo colonial. Quer dizer: uma parte do dinheiro está sendo absorvido pelo circuito dos países ricos. Com este dado, o valor da ajuda desce de 0.25 do orçamento para menos de 0.1 por cento. Afinal, não se está dando tanto quanto os cidadãos dos países ricos acreditam.

O ciclo perpétuo da divida

Os países africanos estão gastando e continuarão indefinidamente gastando mais a pagar o serviço da divida do que a investir na saúde ou na educação. De 1980 a 1990 a totalidade da divida da África sub-sahariana mais do que duplicou. Em 1995, as exportações somadas dos países africanos não chegavam para pagar o serviço da divida. A questão para eles já não era a de pagar ou não pagar, mas de sobreviver ou sucumbir.

Quando houver uma decisão sobre o cancelamento será demasiado tarde. Alguém já chamou à divida uma “guerra por outros meios”. Essa agressão silenciosa não aparece na TV mas que é responsável pela morte de meio milhão de crianças em cada ano. Esta guerra faz da filantropia do Ocidente um falhanço anunciado e acabará por desacreditar um sentimento tão nobre como a solidariedade. Os mais miseráveis do continente – a quem se supõe ser destinada a ajuda internacional - pagarão, em cada ano, mais do que aquilo que estão recebendo. A verdade é simples: a divida é impagável. Nenhum país africano poderá exercer a sua independência sem que esse fardo tenha sido eliminado. Com este passado não pode haver futuro.

Quando o HIPC se decidiu em 1995 aliviar a divida de Moçambique nós festejamos. O anúncio do alívio foi feito com pompa e circunstância, um prémio a celebrar o nosso comportamento ajuizado. Afinal, era maior a festa que a razão de festejar. De 113 milhões por ano passou a pagar 100 milhões. Essa redução era, afinal, insignificante. Para se qualificar Moçambique teve que implementar medidas draconianas do Programa de Reajustamento Económico. Essas medidas tiveram impactos dramáticos no país. O tão propalado alívio acabou não libertando fundos que poderiam marcar a diferença no desenvolvimento de Moçambique.

Por outro lado, o que hoje se exige a Moçambique não se exigiu a países da Europa. Depois da grande Guerra, o chamado London Agreement aceitou que a Alemanha pagasse a dívida acumulada aos aliados a uma taxa anual equivalente a 3.5 por cento dos seus rendimentos. Mais do que esse valor era tido como um factor de estrangulamento inaceitável. Porém, mesmo com a tal redução do HIPC, Moçambique pagará 13.5 % do seu rendimento. O que quer dizer que estamos pagando 4 vezes mais que se achou aceitável a Alemanha pagar, numa situação de crise global e em que os preços das matérias-primas estão mais baixos do que nunca.

Dar aos pobres a mesma chance de experimentar

Os países pobres necessitam ter espaço para realizar os seus próprios debates e ensaios, experimentarem soluções ao seu próprio ritmo. Queremos ter a liberdade de, por exemplo, poder decidir qual o melhor momento para privatizar os serviços públicos. Essa liberdade foi, afinal, conferida aos europeus.

Instituições financeiras internacionais testaram nos países pobres fórmulas que se revelaram desastrosas. Parecia simples: tal como na receita socialista, uma mudança no sistema de propriedade mudaria toda a estrutura da economia. Produziram em embalagens de aplicação fácil os pacotes de reajustamento estrutural, formulas miraculosas que nos permitiriam evoluir queimando etapas.

A Moçambique também foi aplicada a mesma receita. Todos esses programas obrigaram a elevar preços pelos serviços públicos, a cortar subsídios e reduzir orçamentos para serviços sociais: toda esta receita resultou em crescente pobreza e desemprego. Hoje, é generalizado aceitar que esses programas não correram bem. Quem paga para recompensar os pobres dessa falhada experiência?

O caso da castanha de caju de Moçambique é hoje tida como uma ilustração desses falhanços com efeitos catastróficos . Moçambique tinha e tem na castanha de caju um dos seus pilares de exportação. Em poucos anos o sector ficou arruinado, 80 por cento das fábricas fecharam e milhares de operários ficaram sem emprego. De um modo geral, a intervenção na agricultura pautou por uma ingenuidade crassa: a idéia de que intervindo nos preços se acabaria resolvendo tudo o resto.

Os actuais pacotes de redução da pobreza absoluta poderão ser a simples continuação, com outro vestuário, dos Programas de Reajustamento anteriormente falhados.

Moralizar aquilo que se pode exigir aos outros

Parte dos que nos pedem não é historicamente realizável. Os países mais pobres devem liberalizar as suas economias num período mais curto do que foi alguma vez exigido aos países desenvolvidos. Algumas vezes, coloca-se como condição de libertação dos fundos o cumprimento de metas que são impraticáveis. Espera-se que façamos em 5 anos aquilo que outros levaram séculos a alcançar. Algumas das nações européias que nos cobram pela descentralização estão muito longe de cumprir, elas próprias, esse processo de descentralização.

Alguns dos que hoje nos exigem clareza, transparência e boa governação apoiaram golpes de Estado em África, patrocinaram o assassinato de líderes e apoiaram agressões a regimes sob o único pretexto de estarem do lado errado no período da Guerra Fria. Ainda hoje a ajuda que se ergue como um “dever moral” continua sendo condicionada politicamente. Quem fala, por exemplo, da ditadura infame da Guiné Equatorial ? Em 1994, a embaixada dos EUA fechou e os americanos romperam com o regime da Guiné Equatorial por acharem inaceitável o regime de Teodoro Obiang. Um ano depois, quando foram descobertas importantes jazidas de petróleo, os EUA regressaram correndo, aceitando aquilo que antes era intolerável. O petróleo é um poderoso diluente de ditaduras.

Algumas das vozes que reclamam moralidade dos regimes africanos estiveram caladas perante a injustiça do apartheid. Ao menos, o meu pequeno país foi capaz de se erguer não apenas contra o poderoso apartheid sul-africano mas contra o regime rodesiano de Ian Smith. Para defendermos essa coerência de princípios perdemos 17 bilhões de dólares, considerando apenas os custos directos da desestabilização lançada contra o nosso país. Esse dívida financeira e moral não entrará nas contas com a chamada comunidade internacional. Como não entrará nas contas a guerra de desestabilização que por quase duas décadas martirizou a nação moçambicana. Hoje fala-se de guerra civil em Moçambique como se esse conflito tivesse tido apenas contornos endógenos. É preciso não esquecer nunca: essa guerra foi gerada no ventre do apartheid, estava desde o início inscrita na chamada estratégia de agressão total contra os vizinhos da África do Sul.

No meu país o espectro do terrorismo não começou com o Onze de Setembro. Milhares de crianças estão desde há mais de vinte anos espreitando com medo o chão que vão pisar. Mais de um milhão de minas antipessoais foi semeada durante a guerra. Milhares desses engenhos mortais continua semeando o terror no seio de cidadãos inocentes. Quantos dos países ricos que se mobilizam contra terrorismo assinaram a convenção para o banimento da produção de minas?

O convite para a simulação

A resposta a tudo isto, é claro, deveria vir de dentro dos países pobres. Teríamos que ter agenda, própria, uma estratégia nossa. Forçados a sobreviver no imediato vamos investindo naquilo que são chamadas as “sound policies”: o que é bom é privatizar, descentralizar, cumprir os indicadores da macro-economia. Mesmo sabendo que isso corresponde a a uma encenação para agradar aos doadores. É mais importante obedecer cegamente a um valor estipulado para a taxa de inflacção do que criar condições de emprego. Estamos produzindo um ambiente económico e social propício para nos qualificarmos para mais ajuda, em vez de criarmos um ambiente propício para o nosso desenvolvimento.

As palavras da moda vão-se sucedendo num léxico descartável: “comunidades locais”, desenvolvimento sustentável, assuntos de géneros, sociedade civil, povos indígenas, comunidades tribais. Nem sempre se entende a substância concreta dessas palavras. Mas elas conduzem a um jogo de sedução reciproca, a uma infindável encenação teatral. Não tarda que nos nossos países – esses a quem se ordena que emagreçam o Estado – surjam Ministérios para a Sociedade Civil, Ministérios das ONGs, Ministérios para a sustentabilidade.

Caros amigos,
Em 1984 eu estava na minha varanda quando vi chegar a tempestade. Na altura não tinha nome, mas uma enorme ventania fez levantar poeiras no chão e ondas no mar, misturando granizo e vento, quebrando vidros, erguendo tectos, espalhando destruição. Depois, o fenómeno levou nome, um nome de mulher como convém a qualquer tempestade que se digne. A tempestade foi chamada de DOMOINA. A minha angústia perante os destroços era: como nos vamos reerguer, em plena guerra e no meio da maior miséria? Mas a solidariedade interna, ainda assim, deitou semente e colheu fruto. Os apoios vieram de dentro e o país encontrou ainda força para se levantar. Em pouco tempo, as feridas estavam curadas e cicatrizadas.

Falamos aqui da cooperação de Moçambique com a Europa e com o Mundo. Mas a primeira grande questão seria como é que Moçambique está cooperando consigo mesmo? Como é que se promove o desenvolvimento a partir de dentro? Este debate tem que ser conduzido dentro de África. Ele já está nascendo com a emergência de jovens que não se satisfazem com o discurso saturado da culpabilização dos outros sempre que analisa a situação interna do continente. O maior desastre de África não é ser pobre mas ter sido empobrecida pela aliança entre a mão exploradora de fora e a mão conivente de dentro.

Trinta anos a pedir apoio cria uma dependência mental que anula o espírito do 25 de Junho. Há toda uma geração de quadros que já raciocina em função do que e a quem se vai pedir. Estamos criando Junhitos, gente que se sonha doméstica e domesticada. O mais grave é que a reprodução dos Junhitos se faz dentro de Moçambique, de forma endógena e indígena.

África não é o continente dos outros, um simples dever moral, um assunto de retórica diplomática. É verdade que compete aos africanos reconquistarem a sua credibilidade como parceiros. Mas os africanos não poderão fazêlo no quadro actual da governação mundial. A verdadeira ajuda será não dar mais mas lutarmos juntos, europeus e africanos, para mudar esta teia de relações. Precisamos de uma ajuda que nos torne menos dependentes da ajuda, temos que construir uma dependência progressivamente menos dependente.

Por enquanto, o que vamos fazendo nós, doadores e receptores, é tocar a duas mãos uma valsa que esconde uma irresolúvel agonia. No final, o continente africano poderá ter mais algumas escolas, mais alguns hospitais. Mas não terá gerado recursos próprios nem desenvolvido as forças produtivas.

Há 30 anos os moçambicanos venceram um poderoso exército desencadeando uma luta de pequenos grupos de guerrilha. Ainda hoje as vitórias que conseguirmos serão por via dessa persistência guerrilheira. Não há grandes soluções, grandes reviravoltas que façam endireitar o eixo da Terra. A nossa soberania (e também a vossa soberania) está nessa fresta, nesse intervalo. O que necessitamos é de um maior diálogo, maior comparticipação e reciprocidade dos mecanismos de controle dos dinheiros e dos compromissos assumidos. O que necessitamos é de nos tornarmos parceiros de verdade.

Termino confessando-vos um sonho, um desejo. Os trinta anos de Independência não são apenas um momento já vivido. São um tempo vivo cujas potencialidades ainda se irão revelar por inteiro. O nosso passado, desde 1975, é um futuro. Uma semente que está dando árvore. Queremos ter direito à sombra dessa grande árvore. E queremos partilhar essa promessa de felicidade com os nossos irmãos da Suíça. Porque também eles, os suíços,
nos ajudar a semear esse futuro.


FONTE:
Revista Via Atlântica nº 8 – dezembro/2005. pp. 191-204

ÁFRICA E AFRICANIDADES

http://africaeafricanidades.wordpress.com/

ÁFRICA E AFRICANIDADES. Espaço destinado a reflexão, discussão e divulgação de temáticas africanas e afro-brasileiras.

Este é o site da Nágila Oliveira Santos, colega de turma da pós-graduação África/Brasil: laços e diferenças - Universidade Castelo Branco.

domingo, 9 de setembro de 2007

O Homem Provisório: a travessia da literatura para o teatro

Sertão, palavra-chave do romance, é mais que um lugar geográfico. Espaço sem fronteiras que habita o homem, posto entre limites, nunca antes alcançados, do mar e da cidade, e por isso condenando em sua saga de percorrer o lugar que carece de fechos para alcançar a dimensão mais interior: longe e fundo. Nesse cenário em que o fantástico e o maravilhoso fazem parte do cotidiano, pessoas comuns carregam na alma e no destino os grandes valores da vida: o amor, a coragem, a culpa, as alegrias. O sertão é o mundo, exatamente pela capacidade de ir às questões fundamentais da existência.
João Paulo. O sertão é o mundo. In: 50 anos de Grande sertão: veredas. Jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, 04 de março de 2006.

Muito já se falou, muito já se escreveu sobre Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, principalmente no ano passado quando a obra-prima roseana completou o seu primeiro cinqüentenário. O que foi muito bom por sinal e nada mais justo.

Desde a tenra idade desenvolvi enorme apreço pelo sertão. Fosse na televisão com Morte e Vida Severina, a mini-série Grande sertão: veredas, a música de Zé Ramalho, Alceu Valença, Elomar, Xangai e Chico Science & Nação Zumbi, filmes como Deus e o Diabo na terra do sol, Bye, Bye Brasil, e os livros Vidas Secas (filme também) de Graciliano Ramos, Ariano Suassuna e os regionalistas da Geração de 30. Além da literatura de cordel, a arte da xilogravura de Samico e o repente na Feira de São Cristóvão, dentre outras referências que não as listarei para não cansar o leitor. Daí surgir imensa expectativa quando há oportunidade de ver alguma arte que tenha o sertão como tema.

Entretanto, não quero aqui tecer maiores considerações sobre mim e menos ainda a respeito do clássico roseano da nossa Literatura, mas, sim, comentar sobre a agradabilíssima surpresa que foi o espetáculo O homem provisório, da companhia paulista Casa Laboratório para as Artes do Teatro, dirigida por Cacá Carvalho.

Quando peguei o folder da peça, gostei do que li. Porém, gato escaldado, procurei não criar maiores expectativas a partir do texto, pois já assisti peças em que o folder era melhor que a atração principal. Atentei para o trabalho de pesquisa na região do Cariri durante quarenta dias, o contato com artistas locais como o xilogravurista Nilo, que participa com uma bela exposição de gravuras na entrada do teatro, o músico Di Freitas e o poeta de raríssima beleza sertaneja Geraldo Alencar, parceiro de Patativa do Assaré, e responsável pelo excelente texto da peça (120 sonetos). Como bem afirma Cacá Carvalho: “Guimarães virou Geraldo”.

Todavia, foi com inenarrável satisfação que percebi rapidamente que não havia necessidade para maiores apreensões. A peça remete-nos a um sertão de extrema aridez, jagunços broncos e duros como a terra rachada. Belas e criativas transposições para as cavalgadas e lutas. A música é de um lirismo impressionante, às vezes assustadora, às vezes encantadora, mas sempre marcante e muito bem encaixada no decorrer do espetáculo. O cenário é formado por panos com paisagens do sertão e a iluminação sobre eles é fantástica. Simplicidade e bom gosto casados com perfeição. O sertão está por toda parte.

Surpreendentes e chocantes são as cabeças inspiradas nos cangaceiros mortos do bando de Lampião e o seu uso constante no decorrer do espetáculo. O elenco está afinado. O diabo Hermógenes é apavorante. Comovente os flertes entre Riobaldo e Diadorim, sem exageros e com grande sutileza. A cena final da morte de Diadorim e o sofrimento de Riobaldo é de marejar os olhos. Mas o que me pareceu o ponto alto da peça, talvez tenha sido a feliz transposição do imaginário místico e da fé exacerbada do sertanejo que permeia todo o espetáculo. A relação com o real fantástico do homem do sertão, daquele que diz que Deus “fez o mundo / Urgente porém sem pressa / Ele fez em um segundo / Esta é a lei do milagre / Do soberano profundo” e do “diabo não existe / Por isso ele é tão forte / Na rua, no redemoinho / Tem nome de toda a sorte”.

Bom, a peça ficará em cartaz somente até o dia 30 de setembro no Espaço Sesc - Copacabana e prestigiarei novamente a linda encenação. E trata-se de uma forte concorrente a qualquer lista de melhores do ano.

Parabéns para a Casa Laboratório para as Artes do Teatro! Parabéns a Cacá Carvalho, a todos os que participaram da criação deste belo e comovente espetáculo, que conseguiu transpor a travessia da existência humana das letras para o palco.

Jung e Eu

Dedicando nossa vida ao estudo, empenhado-nos em trabalhar sem descanso, não sentimos a aproximação sub-reptícia da velhice. Envelhecemos insensivelmente, sem ter consciência disso, e, em vez de sermos brutalmente atacados pela idade, é aos poucos que nos extinguimos.
Cícero. Saber envelhecer.

Há uma peça encenada por Sergio Britto no circuito teatral carioca. Quando isto acontece, corro para assisti-la e celebrar o homem que é uma lenda vida do teatro brasileiro. Sei que posso dizer sem exagero diante da grandiosidade da vida de Sergio Britto, vida que se confunde com a construção de nosso teatro.

Admiro neste incansável ator, produtor e diretor a sua vontade, a vitalidade, a entrega e a satisfação pelo que faz, seja no seu programa semanal na TV Educativa, momento em que impressiona pelo senso crítico extremamente apurado e o olhar atento às produções contemporâneas, ou principalmente quando está nos palcos.

Sergio Britto é de uma época em que para ser ator era necessário estudar, aperfeiçoar-se, conhecer os grandes textos das tragédias gregas, Shakespeare, Beckett e Brecht e outros que moldam a carreira de um ator. De uma época onde a competência selecionava os que deviam atuar. Como podemos perceber, bem diferente dos dias atuais. Hoje, para ser ator ou atriz basta estar no Big Brother, ter um corpo remodelado em academias e cirurgias plásticas, e, principalmente, um rosto de traços finos e cabelos lisos como um alemão (o padrão nacional). Estudar os grandes clássicos, interpretação, impostação de voz... para quê?

Vamos à peça. Do alto dos seus oitenta e quatro anos, Sergio Britto resolveu reapresentar o monólogo Jung e Eu, baseado na obra do psicanalista C. G. Jung e no drama da vida do ator Leonardo Svoba, de 83 anos e um ano a menos que Britto. A beleza do espetáculo consiste na apresentação das idéias de Jung que surgem no decorrer da peça, a reflexão sobre a velhice do ator Svoba, “que não tem papéis para fazer, pior, não lhe oferecem nada e chegam a preteri-lo a um ator mais jovem, maquiado de velho”, e a vivência do próprio Sergio Britto, que afirma “Isso, não vivi ainda”.

Singelas são as situações abordadas em um cenário simples que fortalece a interpretação do grande ator que é Sergio Britto. Dramas inerentes à velhice são tratados de forma comovente sem ser piegas ou sentimentalismos novelísticos, que tratam da angústia pela ausência de papéis, a empolgação e a vitalidade trazida pelo convite em fazer um monólogo, o isolamento do filho, único familiar, as conversas com o retrato da esposa, a inquietação causada pela falta de patrocínio e o adiamento da estréia (“com a idade que estou não posso esperar muito tempo”), a descoberta e o prazer da obra junguiana no campo do onírico. O próprio ator afirma no catálogo da peça: “Jung depois da primeira temporada, não saiu mais da minha vida”, entre diversas passagens que formam um belo ensaio sobre a velhice, o ato de atuar, o amor pelo teatro – a sua vida.

Para encerrar, cito Cícero: “as melhores armas para a velhice são o conhecimento e a prática das virtudes. Cultivados em qualquer idade, eles dão frutos soberbos no término de uma existência bem vivida. Eles não somente jamais nos abandonam, mesmo no último momento da vida – o que já é muito importante –, como também a simples consciência de ter vivido sabiamente, associada à lembrança de seus próprios benefícios, é uma sensação das mais agradáveis.”

Parabéns à correta direção de Domingos Oliveira! Parabéns ao nosso incansável homem de teatro Sergio Britto, que nos graceja com mais uma impactante atuação! Muito obrigado!

Jung e Eu. Espaço Sesc até o dia 16/09.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Arlindo Barbeitos: a ciranda onírica da poesia

O poeta angolano Arlindo Barbeitos despertou nas letras de seu país após a independência em 1975, tendo seu primeiro livro publicado, Angola, angolê, angolema em 1976. É considerado pelos críticos das literaturas africanas de língua portuguesa, como um dos principais nomes da década de 1970 ao lado de David Mestre e Ruy Duarte de Carvalho. Os três foram responsáveis pela transição estética e temática entre as gerações dos anos 1950 e 1960, e a produção literária a partir dos anos 1980. Ana Mafalda Leite comenta que o surgimento dos três poetas:

“assinala de forma inequívoca uma mudança formal na escrita e uma procura de novidade estético-temática. (...) uma vez que é a novidade imprimida por estes autores que será uma das fontes de inspiração para a geração seguinte.” (LEITE, 2006, p. 39)

A poesia do período procura novos caminhos, diferenciando-se da poesia feita nas duas décadas anteriores, preocupada em denunciar as mazelas do colonialismo que desencadearia na poesia engajada, de protesto, predominante no corpo literário angolano após o início da guerra colonial, ou seja,

“esses temas e as formas prevalecentes já não satisfazem os escritores. Entra-se num novo período de uma análise mais reflexiva e crítica, em que se faz a investigação da realidade cultural angolana, abordando-a de diversos meios e com técnicas variadas de escrita.” (LEITE, 2006, p. 39)

As novas propostas dos três poetas são apontadas por Carmen Lucia Tindó Secco:

“o aprofundamento da metapoesia, da reflexão sobre o processo estético e a criação de um projeto de resgate da língua literária, aproveitada em suas virtudes intrínsecas e universais, embora não estivesse totalmente ausente um comprometimento ético com as marcas lingüísticas locais, que caracterizaram a poesia dos anos 50 e 60.” (SECCO, 2003, p. 169)

Há também uma preocupação em teorizar o fazer poético, fruto de intensa reflexão e análise, Arlindo Barbeitos faz dos prefácios de seus livros espaço para pensamento crítico. A poesia não fica apenas na busca pelas raízes perdidas, encontrando-se além da influência cultural portuguesa nas letras universaliza-se:

“Um dos aspectos porventura mais frutuosos da escrita destes autores tem a ver concretamente com essa necessidade reflexiva que todos sentem em relação à sua arte poética, a reflexão sobre o rejustamento entre o ético e o estético. (...) E no interior dos poemas Barbeitos desenvolve poeticamente tal mediação, que dinamiza e estrutura o próprio processo de escrita. Por outro lado, são variados os textos da poesia universal reivindicados pelo poeta, pela sua ação formadora de ritmos e compatibilidades. A poesia japonesa, por exemplo, dada a sua brevidade e concisão e, ao mesmo tempo, a atenção à natureza, goza de especial estima do autor.” (LEITE, 2006, p. 41)

A consciente opção pela metalinguagem, a aproximação com a forma concisa do hai-kai japonês, as metáforas insólitas a lembrar o surrealismo e a contaminação do idioma português com o quimbundo fazem com que a poesia de Barbeitos se destaque nas letras angolanas.

Nzoji, o livro que teceremos considerações, foi publicado em 1979, durante a guerra civil travada entre o MPLA e a UNITA que mutilou Angola por décadas. Nzoji quer dizer sonho em quimbundo, e o “eu-lírico procura, pelo trabalho rememorativo, as raízes africanas, os esconderijos do passado que ainda persistem sob as ruínas da violência que dilacerou o corpo de Angola”. (SECCO, 2003, p. 170) O poeta no prefácio do livro, afirma que:

“A recolha aqui apresentada leva o nome de Nzoji (Sonho, em quimbundo) porque os poemas nela contidos reflectem, simultaneamente, a esperança de um passado ainda recente e a visão de um futuro que ora começa. (...)
O bom entendimento de muitas figuras pressupõe o conhecimento do seu significado nas culturas locais. Assim, por exemplo, o arco-íris, por vezes ligado à cobra, representa tal como esta um poder maléfico. Ambos se inserem nas cosmologias africanas que, decompondo-se pelo facto colonial, ressurgem, na cultura popular actual, exprimindo-se em português ou línguas nacionais e entremeadas de componentes europeus. O recurso às formas híbridas e ao português implicam adesão a uma Angola que é processo longo, conseqüente à presença de elementos vários, mesmo antagônicos, integrando-se, ou não, em sínteses que o tempo vai demarcando.”
(BARBEITOS, 1979, p. 1)

Um caminho difícil e dilacerado por séculos de ação colonizadora, da violenta guerra colonial e da absurda guerra civil patrocinada pelas potências imperialistas visando o rico subsolo angolano. Daí o caráter híbrido de seus poemas e o recurso em percorrer o universo onírico passa a ser a saída para se descobrir como indivíduo, suas tradições e História:

“Barbeitos passa a buscar a rota dos sonhos. Estes, entretanto, na poesia do autor, nada têm de fantasia; são a expressão das carências, das faltas, mas cumprem também a tarefa de preencher os vazios da História, apreendendo os fiapos esgarçados das tradições” (SECCO, 2003, p. 169)

Consciente das tradições esgarçadas e do papel que representa como poeta, “antes de tudo quero ser testemunho de uma fase da história angolana dolorosa e cruel” (ROZÁRIO, 1999, p. 241), Barbeitos aproveita-se da sua formação como etnólogo para criar a matéria poética e a urgência em preservá-las:

“A tomada de aspectos ditos tradicionais denota a intenção de preservar a continuidade e alude até a um regresso, selectivo, a formas africanas todavia pouco alteradas. É evidente que tal trâmite obriga a um estudo aprofundado de ideologias prestes a dissiparem-se.” (BARBEITOS, 1979, pp. 1-2)

Ao revisitar as tradições culturais da etnia quimbundo, consequentemente o eu-lírico busca as passagens de memória da infância, relembrando cantigas, adivinhas e provérbios como o próprio diz:

“as canções de roda da minha terra natal. Dançando e cantando, giravam, trocando de lugar, abriam e fechavam a roda. Por analogia, comparei a roda com o cão mordendo o rabo e o vento em redemoinho. Assim quero que seja o meu poema, uma roda de crianças indo pelos ares.” (ROZÁRIO, 1999, p. 241)

São as lembranças da tenra idade que procuram “reinventar imagens da unidade perdida, eis o modo que a poesia do mito e do sonho encontrou para resistir à dor das contradições que a consciência vigilante não pode deixar de ver” (BOSI, 1977, p. 155), e assim cantam os versos:

"vento
em turbilhão
cão
se mordendo
no rabo"
(BARBEITOS, 1979, p. 21)

Em uma linguagem espiralada, Barbeitos procura subverter a cultura imposta pelo colonizador durante séculos e, neobarrocamente, dá voz às antigas cantigas de seu povo. Canções que buscam na repetição dos refrões, no ritmo, na métrica o exercício da memória e a denúncia da ausência da tradição oral angolana massacrada pela opressão que tenta ser resgatada no poema, além da miséria causada pela guerra:

"vogando
vogando vem
um dongo
sem ninguém
cirandando
cirandando vem
uma menina
sem o seu bem
marchando
marchando vem
um soldado sem vintém
voando
voando vem
um pássaro que nem asas tem
vogando
vogando vem
um dongo
sem ninguém"
(BARBEITOS, 1979, p. 14)

Seus versos aliam tradição e modernidade, buscando na oralidade a voz dos excluídos e, por conseguinte, questiona o discurso da história do outro europeu. Cria um espelho retorcido, neobarroco, que é a “reapropriação do barroco pela modernidade gera uma arte descentrada que depõe a ordem estabelecida”. (SECCO, 2002, p. 49) Segundo Severo Sarduy:

"Barroco em sua ação de pesar, em sua queda, em sua linguagem afetada, às vezes estridente, multicor e caótica, que metaforiza a impregnação da entidade logocêntrica que até então nos estruturava em sua distância e autoridade; barroco que recusa toda instauração, que metaforiza a ordem discutida, o deus julgado, a lei transgredida. Barroco da Revolução." (Apud: SECCO, 2002, p.41. SARDUY, 1979, p.178)

A crueldade da guerra civil após a vitória do MPLA na libertação do país, é apresentada em imagens surreais que dilaceram não só a identidade angolana, como também o sonho do poeta, que tenta recompor os fragmentos das manifestações tradicionais:

“a borboleta desbotada
pousou em ramo da árvore morta
a lagartixa branca
atirou a língua mas só pegou folhas secas
e o camaleão vagaroso
subiu ao pau mas esqueceu de mudar a cor

será que a menina de pano azul
mirando-se no espelho opaco das águas pardas
sabe
que mais desastrado ainda
é o vento
e mais desastrado que o vento
é o sonhador adormecido”
(BARBEITOS, 1979, p. 46)

A busca pela memória oral e a origem primeva são usadas como resistência aos difíceis anos de dor, fome e morte. O pesadelo da guerra deixa até os antepassados confusos, que vagam desorientados em tempos de caos:

“por fendas
de máscara apodrecida
passam
tufos de capim de outubro

nos charcos
de teus olhos
pairam moribundos
espíritos de antepassados (...)”
(BARBEITOS, 1979, p. 41)

“por noites de outubro
almas de antepassados
acordam
lagartos adormecidos (...)”
(BARBEITOS, 1979, p. 39)

As frágeis raízes angolanas são expostas no afastamento dos homens das tradições locais, seduzidos pelo poder do colonizador, desestruturam a sociedade dilacerada e perdida, e são metonimizados nos animais em movimentos espiralados a questionar os descaminhos do momento vivenciado:

“corvos de ronda
não sabem
quem matou o antílope
cor de vento listrado de chuva
e
pombos verdes
de vôo redondo
não sabem
por que o homem tatuado
caiu no feitiço das coisas de longe’’
(BARBEITOS, 1979, p. 40)

A poesia de Barbeitos dialoga com os contrastes e mostra o sofrimento dos homens, desamparados, perdidos no tempo e espaço, em curtos versos demonstrando as fraturas causadas pela opressão. Deslocando-se para fugir dos horrores da guerra, apresenta a desterritorialização e despersonalização de Angola:

“carreiros de quissonde
caminhos de gente

se perdendo e encontrando
na lonjura de um olhar (...)”
(BARBEITOS, 1979, p. 29)

“cambaleando
por entre
o ontem e o hoje
se estatelou
ao lusco-fusco
o viajeiro” (
BARBEITOS, 1979, p. 31)

A poesia de Barbeitos passeia entre o lírico e o anti-lírico, apresentando a dor e o horror em curtas e impactantes linhas:

“no céu amendoado de teus olhos
vejo estrelas
que são bombas”
(BARBEITOS, 1979, p. 4)

“uma florinha
uma pedra

debaixo da pedra um dedo
sobre a pedra uma boca que grita”
(BARBEITOS, 1979, p. 6)

A própria noção de tempo é perdida. É o tempo do horror da guerra que esfacela o presente, fratura o passado e faz do futuro um caminho incerto para o país:

“no céu azul distante
a grande roda vermelha
em tempo
que inda não é tempo
xxxxxxxxxxxxde dança (...)”
(BARBEITOS, 1979, p. 17)

“por
tardes de outubro
o tempo
é
rola estonteada
perdendo-se
em lavras de milho”
(BARBEITOS, 1979, p. 18)

“a menina
descuidada
ia
atirando pela janela
abaixo
um tempo
grande como o céu”
(BARBEITOS, 1979, p. 19)

Recorrer às metáforas inusitadas e espontâneas do surrealismo passa a ser o procedimento adotado para expressar a triste realidade angolana. Técnicas surrealistas como a escrita automática são usadas. Segundo Marilda de Vasconcellos Rebouças, “a escrita automática é uma postura extremamente fecunda; aumenta o campo de experiência humano, anexando o sonho e o discurso do desejo, que, embora presente em qualquer literatura, é pela primeira vez buscado” (REBOUÇAS, 1986, p. 42).

“umas quantas pacaças verdes
um lião quase careca
dois elefantes brancos
e
cinco estudantes canhotos
escondendo-se
por detrás de uma ideia de pau
(como se caçador em perigo
se abrigasse à sombra do imbondeiro)

fizeram-me adormecer”
(BARBEITOS, 1979, p. 28)

“... cobra verde de chapéu alto
e cão canhoto jogando cartas...

irmão essa história não é verdade
eu tenho fome”
(BARBEITOS, 1979, p. 13)

A desarmonia causada pelo terror da guerra desarranja a ordem natural da vida, torna-se o surreal da realidade angolana:

“quatro árvores paradas em fuga
e um sapo tentando em vão
acordar uma jibóia adormecida”
(BARBEITOS, 1979, p. 13)

A impossibilidade das realizações é transmitida em situações que beiram o quixotesco e o absurdo da realidade angolana:

“o mabeco raivoso abriu a boca e comeu o vento
o menino sujo atirou pedras ao céu
a pacaça ferida caiu na lama da lagoa sem água
a mulher grávida quebrou a sanga vazia
o bode velho tentou de novo cobrir a cabra sem leite”
(BARBEITOS, 1979, p. 8)

O uso constante de figuras paradoxais e o silêncio imposto pela ação colonizadora são refletidos no corpo do poema em metáforas dissonantes a denunciar a ausência, o vazio causado pela repressão:

ventos
xxxxxxparados que árvores impedem de cair
milhos
xxxxxxo estar de pé fatiga
gentes
xxxxxxque o esperar mata
sóis
xxxxxxindiferentes no firmamento vazio
(BARBEITOS, 1979, p. 7)

O silêncio e o vazio são trabalhados conscientemente pelo poeta na busca pela concisão de seus poemas, como o próprio revela:

“Procuro, primeiro, ver se o poema consegue exprimir o que pretendo, sem redundância e excesso. Fornecer ao mínimo de palavras o máximo de conteúdo, o silêncio, para o qual o discurso aponta, me parece de extrema importância. Depois, tento, formalmente, encontrar um equilíbrio entre texto e significado que atinja a maneira mais agradável, ou inesperada, de transmitir a mensagem almejada. O poema recordaria, então, um filigrana, de luz e sombra, som e silêncio.” (ROZÁRIO, 1999, p. 243)

O silêncio acompanhado da ausência mostram, metapoeticamente, a hesitação do eu-lírico e o país devastado pela miséria, conseqüência da guerra:

“uma palavra dita
uma palavra não dita
dois funambilistas
se equilibrando hesitantes
na linha quebrada dum murmúrio”
(BARBEITOS, 1979, p. 30)

“para além
dos portões da lonjura
quem monta sentinela
às caravanas de palavras de palavras
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxsem palavra

e
aos mercadores de cacos e cacos
xxxxxxxxxxxxxxxde coisa nenhuma”
(BARBEITOS, 1979, p. 33)

A memória oral surge em cantigas cujo o refrão, analogicamente, denunciam a ausência das origens, o afastamento dos valores culturais locais:

“no riso
das meninas em roda
falta um dente
no sonho
do pastor de pé
há um furo
igual à cova
do outro lado do vento

a estrela branca
na testa do boi pardo
não sobe ao céu
xxxxxxxe
a mulher púbere dançando
não casa com o espírito da floresta
no riso
das meninas em roda
falta um dente”
(BARBEITOS, 1979, p. 42)

Entretanto, o universo onírico traz em si a esperança, vagarosa e quase imperceptível. É na discrição do filigrana que aparece o direcionamento para novos caminhos e o fim que se aproxima de um país devastado pela crueldade da guerra:

“em folha murcha
que o chão não tragou
marcada
a geografia do acaso
impertubável
a lesma continua traçando
xxxxxxxxxxxxem filigrana
rotas brancas
que só sapos enrugados
e olhos em busca
seguirão

por dedos de canavial
se escoa como poeira de novembro
um pesadelo antigo”
(BARBEITOS, 1979, p. 45)

O poeta observa o que compõe os valores autóctones e eleva-os, procurando reconstruir as tradições e exalta os costumes, paisagem e fauna angolanos esmagados por séculos de feroz colonialismo:

“a nuvem produziu um elefante
o elefante pariu um coelho
das orelhas do coelho saíram montanhas
as montanhas tornaram-se tetas duma cadela prenha
das tetas da cadela prenha caiu a chuva”
(BARBEITOS, 1979, p. 23)

“quando o melaço
escorre pelas pontas sem forma
quando o aroma de mel quente
atrai as abelhas
quando as manchas pretas
no fundo amarelo
lembram o leopardo

então
come-se a banana devagarinho
lambendo-se os dedos depois.”
(BARBEITOS, 1979, p. 24)


O eu lírico fará dos sonhos o espaço para celebrar os dias de paz que chegarão. A resistência faz-se sentir, a poesia rebela-se. Segundo Alfredo Bosi,

"A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, (...) Resiste ao contínuo ‘harmonioso’ pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia.
Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma liberação futura, o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes. (...)
A luta é, às vezes, subterrânea, abafada, mas tende a subir à tona da consciência e a acirrar-se porque crescem a olhos vistos as garras do domínio. (...)"
(BOSI, 1977, p. 146)

O poema canta a esperança de um futuro melhor que chegará sem pressa, conclama os angolanos para que não adormeçam o sonho de um país em harmonia. Deve-se manter os olhos abertos para ver o amanhecer de paz em Angola:

“amada
minha amada

na madrugada
de teu olhar
desponta
devagar devagarinho
a aurora
de um dia
inda por chegar

amada
minha amada
não feche os olhos”
(BARBEITOS, 1979, p. 48)

Sendo assim, apreendendo as terríveis imagens de dor, angústia e morte, e contrapondo-as com a beleza de suas raízes quimbundo, Arlindo Barbeitos caminha inspirado pela oralidade das cantigas, e reconstrói, na ciranda dos sonhos, a memória esgarçada dos angolanos. Ao transformá-la em sua principal matéria poética, o poeta propõe a “reconquista do tempo roubado que a literatura deve, depurando-os, actualizar” (BARBEITOS, 1979, p. 2):

“(...) histórias das histórias da história
e indas outras
famílias das famílias da família
e inda outras
se emaranhando
em um novelo
que
cresce cresce cresce
em casinhas pequenas”
(BARBEITOS, 1979, p. 49)



FONTES BIBLIOGRÁFICAS:
BARBEITOS, Arlindo. Nzoji. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora para União dos Escritores Angolanos, 1979.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Editora Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1977.

LEITE, Ana Mafalda. Poesia angolana: percursos (des) contínuos. In: Revista Poesia Sempre n° 23. Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 2006.

REBOUÇAS, Marilda de Vasconcellos. Surrealismo. Série Princípios. São Paulo: Editora Ática, 1986.

ROZÁRIO, Denira. Palavra de poeta - Cabo Verde e Angola. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: Fundação Biblioteca Nacional, 1999.

SECCO, Carmen L. T. R. Sonhos e clamores... In: A magia das letras africanas – ensaios escolhidos sobre as literaturas de Angola, Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE Graph Editora, 2003.

SECCO, Carmen L. T. R. A apoteose da palavra e do canto: a dimensão “neobarroca” da poética de José Craveirinha. In: Revista Via Atlântica n. 5. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2002.