quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Ovídio Martins: poemas em cor de sangue desproblematizam a relação com o meio ambiente e aspiram um novo homem cabo-verdiano

O poeta cabo-verdiano Ovídio Martins (nascido em 17/08/1958, Mindelo, Ilha de São Vicente) é um fundamental representante das letras do arquipélago e na luta pela libertação de Cabo Verde do jugo colonial. Com uma poesia de incontestável apelo social, o poeta, em versos agressivos e diretos, auxiliou na busca identitária e na conscientização da população de sua terra contra o execrável sistema colonial português, apesar das peculiaridades que a colonização adquiriu nas ilhas. Segundo José Carlos Venâncio, "é a poesia de Ovídio Martins, dos poetas que iniciam em Cabo Verde uma literatura de empenho político, aquela que mais longe chegou, que mais informou esteticamente a cabo-verdianidade". (VENÂNCIO, 1992, p. 33)

O poeta Ovídio Martins compõe o grupo que criou o Suplemento Dominical (1958), poetas ligados à revista Certeza (1944), de tendência marxista, e "enceta a substituição do conceito regional pelo conceito nacional" (FERREIRA, 1987, p. 56). A poesia neste período é combativa em relação ao colonialismo, valoriza o sentimento nacional e o bem da coletividade, o arquipélago cabo-verdiano é cantando em uníssono.

Estendemos as mãos
desesperadamente estendemos as mãos
Por sobre o mar
(...)
Nosso amor de liberdade
e de justiça
será contemplado
e o nosso povo terá direito ao pão
Povo que trabalha
mas não come
Povo que sonha
o obterá
Temos a ternura das nossas ilhas
temos as certezas das nossas rochas
Estendemos as mãos
desesperadamente estendemos as mãos
caboverdianamente estendemos as mãos
por sobre o mar
(SECCO, 1999, p. 68)

Como podemos perceber, o eu lírico protesta, denuncia a abominável condição colonial e clama a união do país. É a poesia em prol da independência. Segundo Manuel Ferreira,

Nesta fase o escritor pensa a sua terra em termos de pátria, nação, rejeita o Outro – o colonizador –, e está determinado a uma prática literária integrada na nova situação, toda ela voltada, de vez, para a conquista da libertação nacional. Assume-se como homem inteiramente livre, repensa as suas raízes culturais, faz o reencontro consigo próprio e integra-se no destino colectivo de sua gente. (FERREIRA, 1989, p. 78)

E sintetiza:

Momento terceiro: o escritor, após ter adquirido a consciência de sua condição de colonizado, liberta-se completamente da alienação e a sua prática literária cria a sua razão de ser na expressão das raízes profundas da realidade social nacional entendida dialecticamente. (FERREIRA, 1989, p. 79)

Contudo, o lirismo não é abandonado, o amor não é negado. Apenas fica em suspenso diante da urgência da causa libertadora, amor maior de viver em um país livre:

Desculpa meu amor
não há tempo para o amor

Quando melhor arfar o mar
o céu for mais azul
a lua menos leviana

Desculpa meu amor
‘inda é cedo para o amor

Quando fenderem os ares
os pássaros da liberdade

Desculpa meu amor
temos em breve o nosso amor

Quando soluçarem os tambores
na Mãe-Terra distante
Quando endoidecerem tinindo
os sinos todos de Cabo Verde
(SECCO, 1999, pp. 67-68)

O momento histórico é sentido pelas colônias, os ecos da independência são escutados. Todavia, em Cabo Verde, a colonização portuguesa agiu de forma diferenciada em relação às outras colônias africanas, pois houve um processo de mestiçagem da população, tendo as manifestações culturais das classes menos favorecidas influenciado a classe dominante. Segundo Gabriel Mariano,

Em Cabo Verde... o mulato adquiriu desde cedo grande liberdade de movimentos... ter-se-ia transferido para o mulato a condição de mestre, de líder na estruturação da sociedade caboverdeana... Teria sido o funco, e não o sobrado, o laboratório exacto onde se processou a síntese de culturas e a apropriação pelo negro e pelo mulato de elementos e expressões civilizacionais portugueses. A cultura fez-se de baixo para cima. (MARIANO, 1991, p. 53)

O papel do mulato é determinante na formação do corpo identitário cabo-verdiano, que se utiliza da língua crioula e de outras manifestações dos funcos (musseques em Angola, favelas no Brasil) e da mestiçagem para se entranhar no poder do branco europeu. A Profa. Dra. Simone Caputo Gomes (USP), afirma que:

O mestiço cabo-verdiano revelou-se como elemento catalisador e estabilizador, mas também inovador e plástico, com o alastramento tanto horizontal quanto vertical, por todo o arquipélago, de expressões de cultura mestiça formada possivelmente no funco: a língua crioula, o folclore poético, musical e novelístico, a culinária, a doceria, o folclore das advinhas, dos provérbios, os festejos populares, as superstições, os hábitos e esquemas de comportamento. (GOMES, 2006, p. 162)

Apesar da língua crioula exercer papel preponderante nas ilhas, Ovídio Martins não a utiliza constantemente, apenas usa algumas expressões em seus versos, diferente de outros poetas que só escrevem na língua materna. Sobre o bilingüismo em Cabo Verde, Celso Cunha comenta que:

"o máximo a que pode aspirar a língua portuguesa em África, especialmente em Cabo Verde e Guiné Bissau: a de ser oficialmente o que ela sempre foi: não a língua transmitida, maternal, mas a língua adquirida, a segunda língua, veicular da administração, aprendida na escola e elo de ligação da elite cultural com um mundo maior." (CUNHA, 1977, p. 80)

Na literatura cabo-verdiana os escritores utilizam o português como língua para se manifestar, o crioulo surge como exceção no corpo literário do país. Manuel Ferreira esclarece a opção pelo idioma do colonizador:

Se o crioulo é, como se sabe, a língua-mãe do cabo-verdiano e a língua portuguesa, em muitos casos, a língua aprendida supletivamente, seria admitir que, ao nível de competência, o escritor cabo-verdiano se sentisse mais seguro na expressão literária em crioulo. Porém, isso só acontece, em termos gerais, e com algumas exceções (Eugênio Tavares e Sérgio Frusoni podem ser dois exemplos), no plano da poesia popular. Tal paradoxo (aparente ou provisório?) provém não só da carência de organização estrutural teórica da língua cabo-verdiana, como também de uma prolongada e fecunda tradição literária escrita sem a qual uma língua não alcança a maleabilidade e a ductilidade que a autêntica criação literária exige. (FERREIRA, 1987, p. 85)

Em Angola e Moçambique, a língua portuguesa auxiliou na união das diversas etnias desses países, pois unificou, ou pelo menos se propôs, a comunicação em um idioma. Problema que em Cabo Verde acontece de outra maneira, pois a influência do crioulo é marcante apesar do hibridismo com o português e o inglês. O poeta Ovídio Martins assume a postura de Amílcar Cabral em relação à língua portuguesa, que dizia:

"O português (língua) é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram, porque a língua é senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros... A língua é um instrumento que o homem criou através do trabalho, da luta para comunicar com os outros (...) a nossa língua tem que ser o português. E isso é uma honra. É a única coisa que podemos agradecer ao tuga." (CUNHA, 1977, pp. 80-81)

Entretanto, essa aproximação com o poder colonizador, que tentava passar para o cabo-verdiano que ele não fazia parte do continente africano adicionado à condição insular das ilhas, fez com que gerasse desconfiança dos outros países africanos e, principalmente, com as colônias de língua portuguesa. Muitas vezes o cabo-verdiano era o capataz que subjugava os angolanos, moçambicanos e são-tomenses nas cadeias do Tarrafal ou contratava-os para o trabalho forçado em São Tomé. Em entrevista à Denira Rozário o escritor José Vicente Lopes expõe este problema:

"me sentia duplamente discriminado pelos negros e brancos; sendo cabo-verdiano era discriminado por uma camada da população angolana negra. O cabo-verdiano não era bem visto pela população negra, não só em Angola, mas em todos os países africanos. (...)
No espaço colonial português o cabo-verdiano foi utilizado como intermediário na dominação dos povos indígenas. No fundo os portugueses tentavam tirar do cabo-verdiano a idéia de que eles não eram africanos, e como tais indivíduos que deviam ser utilizados como ponta-de-lança na administração colonial. Isso aconteceu em determinados segmentos. Nem todos fizeram parte, alguns por causa da origem social."
(ROSÁRIO, 1999, p. 105)

Todavia, não queremos passar a impressão que a colonização apresentou um nível de crueldade inferior em Cabo Verde. Nenhuma colonização é agradável para os que a sofrem e desde os poetas claridosos, Jorge Barbosa, Baltazar Lopes e Manuel Lopes, principais nomes da revista Claridade (1936), que é "a primeira manifestação intelectual da elite crioula, traçando uma divisória entre a poética tributária do modelo português e o mergulho nas raízes locais, passando pela leitura do modernismo brasileiro" (GOMES, 2006, p. 165), que a denúncia à repressão colonial cria corpo nas letras do arquipélago.

Contudo, o recrudescimento da política salazarista nas colônias fez com que surgissem críticas à postura dos claridosos, considerada amena pelas gerações seguintes que negam as motivações poéticas do grupo pautadas na emigração, evasão e pasargadismo (1). Na década seguinte ao lançamento de Claridade, os ideais da negritude se espalham pelo mundo, assim como as idéias marxistas e o romance regionalista brasileiro da geração de 30. Surge a revista Certeza (1944) e, a partir daí, os poetas bradam "o ficar para resistir". A Profa. Dra. Carmen Lucia Tindó Secco (UFRJ) comenta esse momento:

"cuja a proposta literária era fazer a denúncia político-social da miséria reinante no Arquipélago, houve a dignificação do crioulo e da morabeza como traços caracterizadores da alma cabo-verdiana. (...) a literatura, (...) começou a criticar essa ideologia de que o cabo-verdiano era um ser destinado a emigrar e as gerações seguintes propuseram, então, ‘o ficar para resistir’. O mar, que era concebido como meio de evasão, encapelou-se e suas águas revoltas passaram a conotar a necessidade da ação política, do mergulho nas raízes cabo-verdianas." (SECCO, 1999, pp. 11-13)

Para combater a emigração e o evasionismo dos claridosos, no caso específico de Osvaldo Alcântara e seu "Itinerário de Pasárgada", metapoeticamente, "seja para parafraseá-lo seja para recusá-lo ideologicamente" (GOMES, 2006, p. 167), Ovídio Martins propõe, em furiosos versos, a "Anti-evasão":

Pedirei
Suplicarei
Chorarei

Não vou para Pasárgada

Atirar-me-ei ao chão
E prenderei nas mãos convulsas
Ervas e pedras de sangue

Não vou para Pasárgada

Gritarei
Berrarei
Matarei

Não vou para Pasárgada
(ANDRADE, 1977, p. 48)

No final dos anos 1950 é lançado o Suplemento Cultural (1958, número único) que apresenta os poetas da Geração da Nova Largada: Ovídio Martins, Gabriel Mariano, Aguinaldo Fonseca e outros "negam o mito e se propõem a resgata a história, incitando à ação" (GOMES, 2006, p. 167). A condição climática desfavorável, cara aos claridosos, agora é vista como aliada na resistência e afirmação do cabo-verdiano:

"e as vozes solidárias que temos sempre
escutado
são apenas
as vozes do mar
que nos salgou o sangue
as vozes do vento
que nos entranhou o ritmo do equilíbrio
e as vozes das nossas montanhas
estranha e silenciosamente musicais

Nós somos os flagelados do vento leste!"
(ANDRADE, 1977, p. 46)

A mudança de mentalidade apresenta-se, a insularidade não assusta, a força contra as adversidades do presente projeta um novo futuro nos poemas do poeta. Segundo Alfredo Bosi,

"a evocação é um movimento da alma que vai do presente do ‘eu’ lírico para o pretérito, e daí retorna, presentificado, ao mesmo tempo de quem enuncia. (...) a recusa irada do presente, com vistas ao futuro, tem criado textos de inquietante força poética." (BOSI, 1977, p. 158)

Ovídio Martins recorre à metapoética para expor a mudança, a radicalização da nova proposta literária ao referir-se ao romance Flagelados do Vento Leste, do claridoso Manuel Lopes. Diferenciando-se deste, o eu-lírico não mais se conforma com as injustiças do colonizador, a seca, a fome, os ventos alíseos, o mar como segregador. A força contrária do ambiente em que vive é o alimento necessário para a nova postura. A paisagem hostil não mais o espanta, e como as cabras, os homens permanecem de pé ano após ano. O poema convoca à resistência:

"Somos os flagelados do vento leste!
O mar transmitiu-nos a sua perseverança
Aprendemos com o vento a bailar na desgraça
As cabras ensinaram-nos a comer pedras
Para não perecermos

Somos os flagelados do vento leste!

Morreremos e ressuscitamos todos os anos
para desespero dos que nos impedem
a caminhada
Teimosamente continuamos de pé
num desafio aos deuses e aos homens
E as estiagens já não nos metem medo
porque descobrimos a origem das coisas
(quando pudermos!...)

Somos os flagelados do vento leste!
(ANDRADE, 1977, p. 46)

O homem alia-se à natureza em busca da libertação dos flagelos impostos por séculos de colonização. De acordo com Alfredo Bosi, "a poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos da sociedade" (BOSI, 1977, p. 143), e passa a servir como instrumento de resistência e denúncia às agruras sofridas pelos cabo-verdianos em busca da libertação colonial.

A temática de protesto permanece e outras publicações são feitas como o Bolhetim dos Alunos do Liceu Gil Eanes (1959, único número), tendo como participantes Corsino Fortes, Onésimo da Silveira, e posteriormente o grupo Seló (1962, dois números) constando entre seus poetas, para citar alguns, Oswaldo Osório, Arménio Vieira e Mário Fonseca. Porém, as duas revistas têm curtíssima duração devido à censura imposta pelo salazarismo, contrário à agitação em prol da independência que já era uma realidade. Segundo Bosi:

"A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, (...) Resiste ao contínuo ‘harmonioso’ pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia.
Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma liberação futura, o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes. (...)
A luta é, às vezes, subterrânea, abafada, mas tende a subir à tona da consciência e a acirrar-se porque crescem a olhos vistos as garras do domínio. (...)" (BOSI, 1977, p. 146)

Atento ao sofrimento dos homens de suas ilhas, que, diante da miséria e da fome, do grave problema da insularidade, são obrigados a partir para a distante ilha de São Tomé como contratados. O eu-lírico manifesta a gravidade da situação, do terra-longismo, a emigração forçada, das falsas promessas dos contratantes, a dor, a ausência de fé em um país onde o sincretismo religioso é muito atuante.

Caminho longe...

Caminho obrigado
caminho trilhado
nos braços da fome

Caminho sem nome
caminho de mar
um violão a chorar

Caminho traidor
caminho da dor
ó lenta agonia

Caminho sem dia
caminho sem fé
Roças de São Tomé

Caminho longe...
(ANDRADE, 1977, pp. 233)

O tema do contratado e a violência que lhe é imposta também foi escancarado por outro importante poeta contemporâneo de Ovídio Martins, Gabriel Mariano:

Caminho
Caminho longe
ladeira de São Tomé
Não devia ter sangue
Não devia, mas tem.

Parados os olhos se esfumam
no fumo da chaminé
Devia sorrir de outro modo
O Cristo que vai de pé.

E as bocas reservam fechadas
a dor para mais além
Antigas vozes pressagas
no mastro que vai e vem.

Caminho
caminho longe
ladeira de São Tomé
Devia ser de regresso
devia ser e não é.
(ANDRADE, 1977, pp. 240)

A condição desumana do contratado é um tema recorrente dos poetas africanos de língua portuguesa. Mário de Andrade expõe muito bem a abominável situação:

"Das periferias urbanas ou das sanzalas para as roças e para as minas, o caminho do contratado foi testemunho vivo e sangrento do quotidiano da colonização portuguesa. O trabalho forçado constitui, sem dúvida, o flagelo mais tangível que atingiu o corpo social das terras do continente e das ilhas. Por isso, os poetas conscientes desta vasta empresa de coisificação encontraram o estilo adequado para exprimir o horror dos factos e tirar o significado último das revoltas emergentes." (ANDRADE, 1977, p. 12)

Na incansável defesa de seus pares, Ovídio Martins expõe o drama dos que estão distantes nos trabalhos forçados e nas prisões em São Tomé, e convoca a todos para prestar solidariedade aos sofridos e distantes companheiros cabo-verdianos nos dois poemas que seguem:

"Silêncio Cabo-Verdianos!
choram irmãos nossos
nas roças de São Tomé

E há perigos e ameaças
na noite
grávida de punhais

Prepara o braço
serviçal!

Dos olhos do poeta
rolam lágrimas
cor de sangue."
(ANDRADE, 1977, pp. 234)

"Bendito sejas
serviçal cabo-verdiano
que teimas em ver
para além da prisão
Sabes bem
que para lá dos teus olhos
há a terra de Cabo Verde
que espera por ti
Se tu cansas
É que ainda te abraça
a esperança
e não morreu dentro de ti
o desejo de matar a morte

Bendito sejas
serviçal cabo-verdiano
Não deixes que tuas pálpebras
amorteçam na dor
É preciso enrijá-las
para o dia do regresso
Que voltarás
não numa manhã de nevoeiro
de morbidez alquebrada
mas num dia de sol quente
ébrio de saudade
da terra que ficou
sedento do perdão
da terra que entregaste
sozinha quase nas mãos dos Cains"
(ANDRADE, 1977, pp. 233)

No primeiro poema constam os versos "na noite / grávida de punhais", subtítulo da Antologia Temática de Poesia Africana, de Mário de Andrade, com ilustração de António Domingues e capa de Sebastião Rodrigues. Na ilustração, com viés surrealista, vemos uma negra, grávida, gestando uma criança armada com dois agressivos punhais. É a chegada de um novo ser que não aceita a submissão colonial e nascerá com a força da justiça e da liberdade.


No segundo poema, o eu lírico não deixa morrer a esperança, o sonho de liberdade que virá ‘num dia de sol quente’ como o grito de ‘seló!’(1) dado por aquele que está na beira do cais, avista a chegada de um novo barco e avisa aos que estão em terra. É o barco a trazer um novo ser para Cabo Verde independente. Alfredo Bosi afirma:

"o poeta-profeta vive uma dimensão temporal tensa que vai do presente recusado para o futuro aberto, feito de imagem e desejo. Sobretudo, desejo. (..) Nessa passagem do agora para o ainda não, move-se a palavra profética. Na hipótese do grande pensador hegeliano e marxista Ernst Bloch, é a antecipação que produz, em qualquer tempo, a estrutura simbólica da utopia." (BOSI, 1977, p. 160)

O poeta, baseado em sua utopia, prevê a vitória e não se abate com a violência ensandecida do colonizador
desesperado. As piores atrocidades cometidas contra o ser não desestabiliza a resistência:

"Não nos venham dizer depois
que não vos avisamos!

Podem brandir o chicote
E arreganhar os dentes
E espumar pela boca

(são serviçais...)

podem metê-los em prisões
cadeias nos pulsos
correntes nos pés

(são serviçais...)

podem humilhá-los
mil vezes massacrá-los
matá-los de mil mortes

(são serviçais...)

mas depois
não nos venham dizer
que não vos avisamos!...
(ANDRADE, 1977, p. 235)

Após a Revolução dos Cravos em Portugal em 1974, liderados pelo poeta Amílcar Cabral, o PAIGC (Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde) chega ao poder e as duas colônias conquistam a liberdade. No dia 05/07/1975, Cabo Verde está livre do domínio português, um momento de grande euforia e expectativa com a reconstrução do país toma conta da população. As combativas letras de Ovídio Martins finalmente celebram os novos tempos envoltos de esperança e convoca os cabo-verdianos, os ‘deuses’ e os ‘pioneiros’ para a participação, chamando atenção para que os ideais da revolução não se percam no caminho. Exalta os avanços tecnológicos como a energia eólica, os barcos a aproximarem as ilhas. O fim da agonia dos contratados, a luta constante contra a seca.

Cá vamos reconstruindo o país. Devagar, é certo, mas avançando ilha a ilha. Dor a dor.
(...)

O mar acabou o lamento de não ouvir falar da frota mercante. O vento é a possibilidade de dominarmos a energia eólica. As estradas a rasgar as montanhas puseram fim à música silenciosa destas.

A luta contra a seca é uma constante. Diques conservação do solo e da água. Aproveitamento de recursos hídricos. Ilha a ilha. Lágrima a lágrima.

Puros, de pureza do sal, deixam-nos indiferentes as madrugadas de sonhos. Sonhos, só de criar. Esquecemos os nomes de utopias e de pasárgadas. Avante.

Criadores, portadores de certezas, o bloqueio está longe, perdido o ultraje imenso. Não tentaremos comover os deuses, pela simples razão de sermos nós os deuses.

O povo, de pé, tem agora outro canto: estaleiros navais, centrais elétricas, estruturas metálicas. A solidão morreu.

Desespero, desesperança vão sendo palavras esquisitas. Como falar em desespero, depois de ver desfilar os nossos pioneiros? Como pensar desespero, depois de ouvir aquela garotinha de dois anos (nem isso teria), cantar, muito séria ‘nós somos os pioneiros’ ‘nós somos o futuro da revolução’? Ah, revolução, se não vingares, não será decerto por culpa desta pioneira de pioneiros!

Foi riscado, das nossas estradas a percorrer, o caminho da perdição do serviçal-escravo-contratado. Os capatazes de escravo perderam o emprego.
(...)

Nas ilhas ora calmas não acabarão jamais as metamorfoses. Já têm nome os meninos sem nome da pátria do meio do mar.

O nosso destino, estamos a cumpri-lo: dar a Cabo Verde outro mar, outro céu, outro homem. Devagar, vamos conhecendo o sabor do sal da terra.

Estes mares nunca foram muros, muito menos agora. Ontem, uniram-nos. Hoje, as vedetas rápidas vão encurtar as distâncias.

Com que satisfação morreram as profecias sangrentas e os processos! A noite longa não se repetirá jamais!

Chamamos uma vez a Cabo Verde "estrela salgada de dez braços / e em cada braço mil esperanças". Se pusermos, hoje, em cada esperança mil certezas, ficaremos com uma idéia clara do espírito com que se enfrentam as dificuldades nesta pátria do meio do mar.

Devagar, a reconstrução nacional avança. Ilha a ilha. Dor a dor. Amor a amor.
(SECCO, 1999, pp.70-72)

Sendo assim, com a certeza que sempre carregou nos poemas da utopia libertária à reconstrução nacional, sem abandonar a afirmação identitária, a poesia de Ovídio Martins é um sólido pilar no percurso do discurso da literatura cabo-verdiana na recente e sofrida história do país.


NOTAS:
(1) O referido período é melhor exposto neste blog em "Mito hesperitano, Pasargadismo, Insularidade..."
(2)
Sobre o significado de Seló, o poeta Oswaldo Osório comenta duas passagens sobre sua origem. Em entrevista a José Carlos Venâncio afirma que: "o termo é oriundo do inglês sailor. Tivemos durante cento e tantos anos influência inglesa em São Vicente através das companhias inglesas de carvão aí instaladas para fornecimento dos barcos que atracavam no Porto Grande. Mais tarde esta influência do inglês perdurou através da emigração cabo-verdiana para os Estados Unidos. É assim que o mesmo termo também aparece na Ilha Brava para dizer também que há barco à vista. Como era novidade na altura, resolvemos adoptar tal expressão para o suplemento." (VENÂNCIO, 1992, p. 83)
E para Denira Rozário diz que: "Seló é um brado utilizado na Ilha Brava. Quando se vê um navio na linha do horizonte que está a demandar porto, a gente grita seló, para avisar as pessoas da terra que está um barco a se aproximar". (ROZÁRIO, 1999, p. 70)


FONTES:
ANDRADE, Mário de. Antologia temática de poesia africana: na noite grávida de punhais. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1977.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Editora Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1977.

CUNHA, Celso. Língua, nação, alienação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa. São Paulo: Editora Ática, 1987.

FERREIRA, Manuel. O discurso do percurso africano I. Lisboa: Plátano, 1989.

GOMES, Simone Caputo. Rostos, gestos, falas, olhares de mulher: o texto literário de autoria feminina em Cabo Verde. In: Chaves, Rita e Macedo, Tânia. (Orgs.) Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.

ROZÁRIO, Denira. Palavra de poeta - Cabo Verde e Angola. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: Fundação Biblioteca Nacional, 1999.

SECCO, Carmen L. T. R. (Org.). Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX: Cabo Verde. Rio de Janeiro: UFRJ, Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas e Setor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, 1999. v.2.

VENÂNCIO, José Carlos. Literatura e poder na África lusófona. Lisboa: Ministério da Educação. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Perder, ganhar, viver

Na semana passada o canal a cabo Sportv passou “De Letra – Carlos Drummond de Andrade”, tratando da relação do poeta com o futebol. E é exatamente sobre futebol a crônica abaixo, do dia da fatídica derrota do Brasil para a Itália na Copa do Mundo de 1982, quando um italiano que me recuso a escrever o nome fez três gols no Brasil e eliminou-o da Copa.

Naquele dia, creio que pela primeira vez no alto dos meus oito anos de idade, percebi o quanto era difícil sonhar.


Perder, ganhar, viver
Carlos Drummond de Andrade
Jornal do Brasil, 21/06/1982

Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final do jogo perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis que já não sabiam por que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de festejar qualquer coisa, pois seus corações estavam programados para a alegria; vi o técnico incansável e teimoso da Seleção xingado de bandido e queimado vivo sob a aparência de um boneco, enquanto o jogador que errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos traidores da pátria; vi a notícia do suicida do Ceará e dos mortos do coração por motivo do fracasso esportivo; vi a dor dissolvida em uísque escocês da classe média alta e o surdo clamor de desespero dos pequeninos, pela mesma causa; vi o garotão mudar o gênero das palavras, acusando a mina de pé-fria; vi a decepção controlada do presidente, que se preparava, como torcedor número um do país, para viver o seu grande momento de euforia pessoal e nacional, depois de curtir tantas desilusões de governo; vi os candidatos do partido da situação aturdidos por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso para a campanha eleitoral; vi as oposições divididas, unificadas na mesma perplexidade diante da catástrofe que levará talvez o povo a se desencantar de tudo, inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de bandeirinhas, flâmulas e símbolos diversos do esperado e exigido título de campeões do mundo pela quarta vez, e já agora destinados à ironia do lixo; vi a tristeza dos varredores da limpeza pública e dos faxineiros de edifícios, removendo os destroços da esperança; vi tanta coisa, senti tanta coisa nas almas...

Chego à conclusão de que a derrota, para a qual nunca estamos preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente, é afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória estabelece o jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo. Se uma sucessão de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de vitórias traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos, que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes. Perder implica remoção de detritos: começar de novo.

Certamente, fizemos tudo para ganhar esta caprichosa Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até mesmo ao absurdo, um poder de transformação das coisas, capaz de anular os cálculos mais científicos? Se a Seleção fosse à Espanha, terra de castelos míticos, apenas para pegar o caneco e trazê-lo na mala, como propriedade exclusiva e inalienável do Brasil, que mérito haveria nisso? Na realidade, nós fomos lá pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para recolher um objeto roubado. A verdade é que não voltamos de mãos vazias porque não trouxemos a taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do espírito de competição. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos para a quinta. A Itália não tinha obrigação de perder para o nosso gênio futebolístico. Em peleja de igual para igual, a sorte não nos contemplou. Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas.

Perdendo, após o emocionalismo das lágrimas, readquirimos ou adquirimos, na maioria das cabeças, o senso da moderação, do real contraditório, mas rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da vida. Não somos invencíveis. Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão a grandeza, este valor tão relativo, com tendência a evaporar-se. Eu gostaria de passar a mão na cabeça de Telê Santana e de seus jogadores, reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante não utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria enfático e meio bobo. Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua doçura solidária. Ora, o Telê! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do Mundo de 82 acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos.

E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?