quarta-feira, 11 de julho de 2007

Jorge Guinle Filho: o desbunde neo-expressionista

Há duas ou três semanas, um jornal de grande circulação do Rio de Janeiro publicou uma matéria de capa na sua revista dominical sobre o relacionamento do pintor Jorge Guinle Filho, já falecido, e seu parceiro. Dinheiro, fama, drogas, homossexualismo, aids... não preciso continuar a respeito do conteúdo da matéria, por isto este texto. Afinal, Jorge Guinle também pintava e foi o melhor de sua geração.

Jorge Guinle Filho: o desbunde neo-expressionista

No Brasil, o neo-expressionismo (movimento de caráter mundial, que marcou o retorno à pintura nos anos 1980) coincidiu com o momento de reabertura política. O fim de vinte anos de trevas do período ditatorial estava próximo, os artistas brasileiros não queriam mais falar de direita ou esquerda, comunismo, desigualdades sociais, porões, tortura, fome, seca ou qualquer forma de patrulhamento ideológico. Havia, finalmente, um clima de esperança no ar, o estilo festivo trazido pelo desbunde exigia sua aparição nas artes plásticas. Os artistas da época desproblematizam a teorização excessiva e a racionalização da arte conceitual dos anos 70, portanto, nada melhor que o retorno à pintura, com toda a sua plenitude estética para saciar a sede que os novos tempos prometiam trazer.

Sincronizador para os Quatro Cavaleiros do Apocalipse , 1981 óleo sobre tela 160 x 230 cm

Nesse contexto, em julho de 1984, acontece a exposição Como vai você, Geração 80?, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. A presença maciça da pintura, com predomínio da figuração, com obras em grandes dimensões, sem chassis ou molduras, tendo como catálogo um número especial da revista Módulo, de julho daquele ano, em que o espírito irônico da época está muito bem representado no texto “Papai era surfista profissional, mamãe fazia mapa astral legal. Geração 80 ou como matei aula de arte num shopping center”, escrito por Jorge Guinle Filho, o principal nome, artista e teórico daquela geração.

Jorge Guinle aceitou o desafio de ser o porta-voz da geração, afinal ninguém era mais indicado do que ele para essa tarefa. Guinle passou anos entre Nova Iorque e Paris, e retornou ao Rio de Janeiro no apagar das luzes dos anos 70 quando os assuntos políticos eram mais leves.
A Reposição , 1983 óleo sobre tela 165 x 170 cm

Guinle viu de perto o surgimento do neo-expressionismo e acompanhou a consolidação de artistas como Julian Schnabel, George Baselitz, Sandro Chia e outros. Havia um hiato entre a produção brasileira, por causa da famigerada ditadura, e a do resto do mundo, logo, Guinle representou o sopro de renovação de nossas artes, mais especificamente da pintura, pois exalava erudição visual e inteligência pictórica para ser o líder da geração.
Macunaíma , 1986 óleo sobre tela 200 x 100 cm

A avanlanche imagética de Jorge Guinle é um convite a passear pela história da pintura do século XX. Vemos o fauvismo de Henry Matisse e o cubismo de Pablo Picasso, a action painting de Jackson Pollock e Willem de Kooning, e a pop art de Andy Warhol. Guinle vasculhou as obras de todos esses artistas, morou anos em Nova Iorque e Paris, nenhum deles o intimidava. Afirmou, certa vez, que era necessário retornar à pintura, e fez uma das obras mais cromáticas das artes brasileiras, o que o coloca ao lado de notórios coloristas como Alfredo Volpi e Iberê Camargo.

Ampla gestualidade, oscilação entre figuração e abstração e farto uso de cores, assim era pintura de Guinle. Como Jackson Pollock ensinou, o pintor gestual usa a mão, mas além dela o braço e todo o corpo no embate com o suporte a ser pintado. A emoção submissa oriunda da imersão física assegura a espontaneidade do processo criativo. Logo, o quadro torna-se "vida", e ele compreendeu bem a lição, portanto o que era excessivo e confuso o excitavam, o acúmulo de matéria pictórica o atraía. Essa fisicalidade fez com que Guinle não só desejasse criar uma coisa, mas viver a própria coisa.
Nos Confins da Cidade Muda (Homenagem a Man Ray) , 1984 óleo sobre tela 190,5 x 260 cm

É certo que em Guinle os movimentos ativos e os freios ousados estão presentes. As figuras, quando existem, são fragmentadas e submetidas a gestos imensos, intensos e sensuais. Os motivos, quando existem, são constrangidos ao puramente pictórico. O "Eu" está incluído na pintura, em e com todos os sentidos. A pintura é, afinal, esse "e", esse "no", o "entre" os dois.

A pintura de Guinle está em eterno movimento, tudo está por um triz: fundo que não é fundo, contornos que não contornam, figuras que não figuram, abstrações que não abstraem. São pinturas em perpétuo estado de redefinição: cada pincelada é temporária em vias de partir para um novo movimento. Inacabadas, work in progress para manter intacto o frescor de quando foram executadas vinte anos atrás.
Il Grido Giallo , 1986 acrílica e colagem sobre tela 200,9 x 300,5 cm

Infelizmente, Jorge Guinle teve uma passagem meteórica e morre em 1987. Entretanto, os parcos sete anos de trabalhos, que foram intensos e de grande qualidade, o levaram a participar de quatro Bienais de São Paulo na década de 1980, sendo que na edição de 1989 recebeu uma belíssima homenagem póstuma com 24 de suas melhores obras.
Fontes:
Bach, Cristina. Jorge Guinle. Editora Cosac & Naify. Rio de Janeiro, 1999.

2 comentários:

Brasil Desnudo disse...

Bom dia, Ricardo!

Belo post em lembrar de um dos artistas cariocas, onde pouco se fala e, se retrata através de suas obras, em exposições expressivas no Rio e no Brasil, como um todo!!
Nas várias edições da Bienal de São Paulo, pouco se vê, ou quase nada de Guinle!
O mesmíssimo vem acontecendo todos os anos na tão famosa mostra da Bienal de São Paulo, mas contudo, alguns artistas expressivos, ficam de fora, caido no esquecimento obras que poderiam ilustrar e retratar de forma mais consistente a cultura do nosso Brasil...
Mais uma vez elogio seu post, que de forma direta, relembra Guinle como uma dos nossos Artistas esquecidos na história da Arte brasileira...

Um ótimo domingo pra Ti

Abraços

Marcio RJ

Wanasema disse...

Oi, Marcio!
Quero agradecer seu consistente comentário!
Este texto foi motivado pela matéria citada em seu início, foi como um desabafo, pois ignorou-se o artista plástico excelente que foi JGF. Ele foi, ao lado de JM Basquiat, o artista que mais acompanhei a obra no período que estudei na Escola de Artes Visuais do Parque Lage.
Acho um absurdo, o artista ser da família que é e até hoje não ter sido criado um memorial ou centro cultural em seu nome, mas são atitudes típicas dessa elite retrógrada, provinciana e sem erudição que domina nosso país.
Um suposto ostracismo de JGF e sua ausência nas últimas edições da Bienal retratam a maneira como nossa cultura é tratada. Felizmente, boas retrospectivas aconteceram sobre a obra do referido artista nos últimos três ou quatro anos, como no MAC/RJ e MAM/SP.
Grande abraço,
Ricardo Riso